– Até onde o caçador entra no bosque?
– Até o meio, pois depois já está saindo
(adivinhação popular)
Nossos tempos são de competição desenfreada. Nunca se falou tanto na necessidade de preparação para o trabalho, na especialização essencial ao trabalhador, no profissionalismo essencial ao especialista, e também nunca tantos competiram por tão poucas vagas, bem como nunca a qualidade do aparelho social deixou tanto a desejar. São prédios que desabam, usinas nucleares que vazam, plataformas que afundam, veículos importados com problemas permanentes, hospitais que propagam infecções, policiais que assaltam, escolas que alienam, religiosos que estupram, computadores que perdem arquivos.
No auge da era “científica”, vivemos angustiados com a estabilidade do nosso emprego, com a segurança de nossa casa, com a probabilidade de algum aparelho essencial vir a falhar, com o que nossos filhos vão querer ser no futuro.
Algo está errado na forma geral da civilização, e podemos sentir isto, embora não possamos verbalizar. Temos uma fórmula geral de vida, que tentamos seguir, e que basicamente consiste em sermos acolhidos por nossos pais durante as primeiras duas décadas, período em que realizamos a educação fundamental e média, e decidimos qual será nossa função na sociedade – a profissão. Segue-se uma década de estudos especializados e luta pelo primeiro emprego, e depois duas décadas constituindo família e patrimônio; uma década de estabilidade, e as décadas seguintes em trajetória descendente, tornando-nos inúteis, espectadores, esquecidos, e finalmente entulho.
Profissionalismo
O ponto alto de nossa trajetória parece ser quando somos socialmente “úteis”, ou profissionais qualificados. Acreditamos muito em profissionalização, tanto como solução individual de vida como para o desenvolvimento de nossa civilização.
Mas talvez estejamos bastante equivocados. Todos os problemas do mundo atual estão sendo causados por profissionais, e até mesmo por profissionais eficientes. Financistas, especialistas em marketing, psicólogos, estão a serviço da manipulação e do lucro de grandes oligopólios. Engenheiros e técnicos aceleram explorações de recursos esgotando as fontes, poluindo os meios e concentrando o poder econômico dos ricos. Nossos “profissionais” estão na verdade lutando por algum privilégiozinho pessoal em um mundo utilitário e materialista, de uma forma quase predatória.
Por que o grifo em “profissionais”? Porque além de utilitarista, nosso pensamento é oligocrata, e imaginamos que profissionais são apenas pessoas “formadas” por uma instituição específica, normalmente de nível superior. Nesta hora, não incluimos, via de regra, padeiros, cozinheiros, faxineiros, carteiros, motoristas, operários, pedreiros e outros tantos desempenhos absolutamente essenciais à nossa sociedade no rol dos “profissionais”.
Isso porque a motivação básica da profissionalização é individual e materialista, e está ligada à conquista de recursos econômicos e aquisição de patrimônio material, como meta maior no futuro de cada indivíduo, como princípio geral. Assim, ocupações com menores proventos não são consideradas, em nosso profi$$ionalismo.
Se lançarmos um olhar crítico aos nossos profi$$ionais de hoje, veremos que estão compromentendo nosso planeta. Por outro lado, se percorrermos a linha da história que construiu nossa ciência atual, constatamos que nossos grandes pensadores e inventores não eram os profissionais como hoje imaginamos. Assim Isaac Newton trabalhou na Casa da Moeda, Einstein em um escritório de patentes, Edison era guarda-freios, Kepler era pastor, Galileu estudou medicina. O idealizador do construtivismo era biólogo, o do pára-raios era editor, o da pilha elétrica era dentista, o do telégrafo era artista plástico, e o da central telefônica, agente funerário. Jesus Cristo era carpinteiro, mas a tequila e o balão aerostático foram inventados por padres.
Parece que os grandes atos são realizados por seres especiais para a humanidade, mas sem uma conexão necessária com sua ocupação profissional. A profissão tem mais a ver com nossa sobrevivência material, e um mundo mais profissionalizado talvez venha a ser um mundo mais materialista.
Moralidade
Usamos o termo moral como um valor positivo, mas este é um preconceito questionável. O vocábulo moral tem sido usado para significar uma verdade maior, a serviço de algum abstrato bem-comum, e, portanto acima de questões individuais. As exigências moralistas são sempre aplicadas por oligarquias que detém o poder sobre os moralizados, e muitas vezes não se aplicam, de forma reflexiva, sobre as mesmas. Isso acontece com os pais sobre seus filhos, escolas sobre alunos, governos sobre povos, igrejas sobre fiéis e oficiais sobre comandados. Não é sem fundamento que a palavra moralista adquiriu, desde a revolução hyppie da década de 60, uma conotação pejorativa.
Propomos nos afastar de conotações puramente behavioristas (comportamentais), e propor uma ideia de moral baseada em um conceito de espiritualidade, proposto por William Hatcher.
Espiritualidade, nesse caso, seria tomada como um conjunto de capacidades do ser humano em três níveis de concepção:
a) capacidades objetivas – como a memória, o raciocínio e outras
b) capacidades subjetivas – como as emoções e o amor
c) capacidade volitiva – a de iniciar uma ação e de persistir na mesma
Assim posto, estabelece Hatcher, tudo o que desenvolve a capacidade espiritual é moral, e tudo aquilo que a inibe é imoral. Com base nesta idéia devemos retomar a discussão sobre profissionalismo.
(es-1998)