Para meus amigos e camaradas de lutas do tempo da ditadura e para Maria Emília, amiga dos tempos de democracia”
Outro dia, uma pessoa bem jovem perguntou a um grupo o que fizemos durante a ditadura militar. Isso abriu minha caixa de lembranças, aquelas que nunca haviam sido esquecidas. Uma pessoa que estava junto respondeu que “éramos muito novinhos nessa época”. E é verdade mesmo. Éramos muito novinhos.
Caso pudesse classificar as reações das pessoas frente à ditadura militar, eu diria, de maneira muito rígida, que uns nem viram a ditadura passar. Outros viram e ignoraram. Alguns viram e atuaram, tanto a favor quanto contra.
Nasci 6 meses antes do Golpe Militar de março de 64. O que me habilita a dizer que fizemos 50 anos ao mesmo tempo. O que me permite lamentar ter nascido na mesma época. Já que, como irmã mais velha em 6 meses, posso afirmar que perdi muito com esse nascimento.
Cresci e entrei na escola durante o período chamado Anos de Chumbo (chamamos assim o período do Governo Médici). Período mais difícil dos 21 anos em que faltou democracia. Durante anos, tive um pesadelo repetitivo com o mesmo personagem. Ele aparecia sempre pra acabar com minhas noites. Sonhava com meu conterrâneo que, por acaso, era o presidente do país nesse período e que chegou ao poder de uma maneira nada recomendável. General Médici, figura ilustre durante muitas décadas em minha cidade natal e alvo dos meus maiores medos. Sim, sonhava com ele. Ou melhor, ele invadia minhas noites até poucos anos, quando a casa em que vivia foi transformada em Museu Emílio Garrastazu Médici. Hoje, rebatizada, para alívio de minhas noites e de muitos bageenses.
Muito cedo me interessei pela política. Isso não é coisa fácil quando se vive em um país em que o autoritarismo vigora. Quando tinha 12 anos e estudava em uma escola religiosa, conheci dois irmãos Maristas (Irmão Fábio e Irmão Chico) que me convidaram a participar de um grupo de jovens da escola e da Igreja Católica. Na época, a Igreja Católica tinha uma forte atuação política e duas orientações distintas: um grupo extremamente conservador chamado CLJ (Curso de Liderança Juvenil), entre outros, e um grupo contestador e ligado à Teologia da Libertação, chamado CETA (Centro de Treinamento para a Ação), entre outros grupos originados da AP (Ação Popular). Para minha sorte, os irmãos que me convidaram eram ligados à Teologia da Libertação. Ali fiz minha formação política junto aos Maristas e depois com os Jesuítas do Colégio Anchieta, quando comecei a participar de um curso anual, que ocorria no Seminário Maior de Viamão, durante o verão, de formação de jovens lideranças. Durante 3 anos de CETA, nos anos 76, 77 e 78 ( com 13, 14 e 15 anos) ali era o lugar, ligado à Igreja Católica, de onde saíram jovens que aprenderam a compreender a realidade com aulas de História, Sociologia, Filosofia e Teologia. Eram intensos 10 dias, em cada etapa, totalizando 30 dias. Ensinavam a usar um método chamado Ver-Julgar-Agir e, acima de tudo, a olhar os pobres e os oprimidos do país. Ali também foi ensinado que as fronteiras do mundo eram apenas convenções e que a luta era internacional. Nesse lugar se preparou uma parte considerável de militantes que atuam em várias frentes hoje.
Fiquei nesse grupo dos 12 anos aos 16 anos, fazendo o que hoje se chama de trabalhos sociais, acrescidos de uma visão política baseada na conscientização do papel do indivíduo e da comunidade (eram as Comunidades Eclesiásticas de Base). Por isso, um trabalho mal visto por quem estava no poder. E a pressão recebida para romper com esse grupo era constante. Meu pai pressionava, porque era pressionado pela burguesia da cidade. Eu resistia.
Aos 17 anos, passei no vestibular e fui para a Universidade. Fui morar em Santa Maria para estudar. Claro que havia um mesmo grupo por lá e comecei a participar. Em pouco tempo, fui abordada por outro tipo de grupo. Um grupo que não era baseado na Teologia e que pensava em ações mais radicais. Isso já era 1981, governo do Figueiredo, aquele que dizia que preferia cheiro de cavalo a cheiro de povo. Não eram mais os Anos de Chumbo embora ainda fosse uma Ditadura. Meu novo grupo era um partido clandestino. Sim, clandestino, porque era a época do bipartidarismo (ARENA e MDB). Os militares não permitiam outros partidos, muito menos um partido comunista como o PRC ( Partido Revolucionário Comunista).
Sair de um grupo de Teologia da Libertação para o PRC teve grandes impactos na minha vida. Um deles foi começar a militar de maneira organizada e clandestina. Militar em um partido que desejava, entre outras coisas, apenas derrubar a ditadura militar, é algo que produz grandes marcas. Esse partido, espalhado por todo o país, atuou de maneira intensa até o fim dos anos 80. Com nomes fictícios, reuniões e congressos clandestinos, conquistamos espaços possíveis e impossíveis.
Na Universidade, o PRC (junto com outras organizações) organizou e liderou de passeatas com direito à repressão policial até a invasão e a ocupação do Restaurante Universitário; da ocupação do Conselho Universitário (encerramos e mantivemos todo o Conselho preso em uma sala durante horas) à ocupação da Reitoria. Fundou e conquistou os diretórios acadêmicos e os DCEs de várias cidades, mesmo sendo proibido. Organizou eventos culturais importantes como o Cio da Terra, em Caxias do Sul e, depois, o Nossas Expressões, em Santa Maria. Criou grupos feministas como o Germinal, fundamental para uma geração inteira. Elegeu vereadores e deputados por todo o país.
Fiquei em Santa Maria por 4 anos. Formada, fui morar em Porto Alegre no ano seguinte à derrota das Diretas-Já. Em 85, no Governo Sarney, oficialmente fim da Ditadura, embora governada por um legítimo representante da ARENA, já se respiravam novos ares. Em Porto Alegre, continuei a militância, agora de maneira exclusiva, em duas frentes: campanha política para deputado constituinte e prefeitura de Canoas e, ao mesmo tempo, trabalhando no Jornal Fazendo O Amanhã (jornal do PRC).
Isso foi até 1989, quando as mudanças democráticas começam a tomar mais forma e a nova Constituição tira da clandestinidade todos os partidos proscritos. E teremos, pela primeira vez, desde 1961, a primeira eleição para presidência do Brasil. Mas aí é outra história.
Assim, respondendo à pergunta do título “Onde você estava na longa noite de 64?”, eu estava tentando derrubar a Ditadura, mesmo sendo tão novinha.
Texto originalmente publicado no livro “Lia, mas não escrevia – Contos, Crônicas e Poesias”, organizado por Luis Felipe Nascimento.
Parabéns. Compartilho História parecida, sem a grandeza da tua intensidade. Mas lendo o teu artigo, acho que também posso responder à pergunta do título: estava tentando derrubar a ditadura, mesmo sendo tão novinho. Bah, e agora, alguns, desejam ela de volta…
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Obrigada Paulo. Uma pena que a gente tenha tido uma experiência desse tipo. Adoraria ter nascido e crescido na democracia. Certamente, que deseja uma ditadura nāo tem noçāo do que está dizendo e desejando. Abraço, Sonia
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