A LITERATURA E O SUJEITO

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“SE PODES OLHAR, VÊ. SE PODES VER, REPARA”

SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira, 2011, p. 09.

 

A atualidade está perpassada de discrepâncias, violências, racismo, preconceitos, guerras, atos de brutalidade que, sobremaneira, marcam a realidade e mostram o perpetuar de ações que deveriam ser banidas.

As guerras vivenciadas durante o século XX e as atuais situações de intolerância presenciadas em nosso recente século XXI marcaram e estão marcando culturalmente a formação das novas gerações. É através da literatura que, talvez, possamos trazer à luz da razão os sujeitos enquanto atores sociais capazes de indiciar mudanças de pensamento e de posturas, enquanto configurações de uma sociedade em seu pleno sentido e, deste modo, permitir uma compreensão e melhor posição sobre as atitudes a tomar perante a História, pois “o que cabe ao romancista é, entre outras coisas, dar um diagnóstico das doenças da sua época, relacionando-as quando possível com doenças que nos vêm do passado”¹. Não lhe compete prescrever um tratamento para o organismo social, mas através de seu “mundo de possíveis” conjugar o olhar do passado e do presente, constituindo através da catarse criativa e literária a possibilidade de levar o Homem a compreender a si mesmo e ao outro. A literatura, livre em sua posição de criação, mostra os flagelos emocionais e físicos que a humanidade, através de seus indivíduos, ficcionais ou embasados em seres reais, tem sofrido. Espontaneamente ou não, ela apresenta em sua estrutura interna a voz de um período, a visão do autor. Benjamin Abdala Júnior explica essa visão autoral implícita da linguagem literária como fundamental, pois a “consciência literária do escritor engajado se traduz numa codificação artística desse patrimônio coletivo; como […] esse escritor operacionaliza a necessidade comunicativa […] com a abertura informativa dos textos artísticos”². Ou seja, o escritor, cercado pelo mundo político, social e cultural, é trespassado pela logicidade do período e contamina, pincela sua percepção do social no que escreve. Em inúmeras entrevistas dadas durante sua vida, Erico deixou clara sua visão a respeito da responsabilidade do escritor. Na coletânea Erico Verissimo, a liberdade de escrever: entrevistas sobre literatura e política, organizada por Maria da Glória Bordini, o autor expõe:

Fala-se em literatura engajada. Ela sempre o é. O autor se engaja na luta política, partidária ou não, na luta religiosa… O escritor se engaja também com o Homem e seus problemas. Acima de tudo o escritor se engaja consigo mesmo. (…) Não vejo como um romancista que escreve sobre estes nossos tempos, possa deixar de focar os problemas sociais e políticos que lhe estão saltando na cara, todos os dias (BORDINI,1997, p. 62-63).

A literatura, em todos os tempos e de um modo ou de outro, apresentou em suas construções textuais aspectos sócio-políticos de grupos, sociedades e nações, indicando aspectos significativos de um espaço-tempo representativo para o homem, vinculando uma espécie de memória cultural. Sopesamos, no entanto, que ao escrever um texto o autor estabelece uma memória espaço-temporal com vínculos com o mundo em que se insere, mas sem a obrigação dessa relação. A questão mimética aristotélica subjaz à literatura, dando-lhe liberdade produtiva na formulação de seu tecido. Ao se pensar nas relações e entrelaçamentos possíveis de observar com o tecido literário, o direito e a questão política se mostram bastante produtivos.

Agora, consideremos os mundos formulados na literatura saramaguiana, como as obras Ensaio sobre a cegueira (2011) e Ensaio sobre a lucidez (2012), mais especificamente: são espaços textuais de contestação ao mostrarem um mundo sociocultural desvirtuado da questão de respeito ao outro, da liberdade de individualidade e diferença, sem tratamentos cruéis, degradantes ou tortura, sem arbitrariedade de reconhecimento e retenção, além de liberdade de manifestação e convicções (conforme artigos da Declaração dos Direitos Universais Humanos). Nesse processo de arbitrariedade constituído nas obras saramaguianas, a necessidade de chocar o leitor é fundamental para estruturar o aspecto de questionamento e agudeza que ambas expressam.

Em Ensaio sobre a cegueira, temos a “cegueira branca”, que faz com que todas as pessoas deixem de ver, mas não cegadas pela escuridão que afunda os sentidos, mas pela brancura que cega, como uma intensa luz que atinge os olhos e não permite a visão. O sentido parece o mesmo, mas não é. A cegueira branca apresenta uma amplidão, a íris se dilata de tal modo que abarca o todo, e a claridade do mundo ofusca porque ela aceita e está “aberta” para o todo. O autor aponta essa noção no final da obra, num trecho esclarecedor em que conversam a única pessoa que não foi contaminada pela cegueira branca e seu cônjuge: “Penso que não cegamos, penso que estamos cegos, Cegos que veem, Cegos que, vendo, não veem” (SARAMAGO, 2011, p. 310). Ou seja, cegos pelo egoísmo, pelas vontades particulares, fechados nos próprios mundos, e que a luz do conhecimento mostra sobre o outro e suas dores, mas que cada sujeito prefere não ver. Desse modo, despersonaliza-se o outro, coisifica-se a pessoa, sua mazela não deve ser vista, então ficamos cegos à dor que não é a nossa.

Os contaminados são isolados aos poucos, violados em seus direitos, tratados como criminosos, sem valor para seus governantes… mas ironicamente todo o país dessa história de ficção é contaminado, as pessoas transformadas em animais em busca de sobrevivência a qualquer custo. O grande questionamento se encontra aí: o que determina o valor humano e sua condição de poder? Não são todos iguais nas necessidades, medos e angústias? Não nos igualamos todos se destituídos de títulos ou posições hierárquicas? E, talvez, por ter a certeza de que todos são iguais em direitos e deveres, e que o medo é que realmente impede o sujeito de ver o que importa – ou não – é que evitou que uma única pessoa cegasse.

Em Ensaio sobre a lucidez, a temática da percepção do outro, do poder, dos direitos e interesses é novamente desenvolvida, mas de modo complementar, pois aqui a história desenrola a questão da escolha, pois, no dia de eleição dos governantes de uma cidade ficcional, ninguém sai para votar. Ninguém. Sem combinações, campanhas ou conluios. A lucidez sobre os homens é apresentada como ato de escolha política de cada um. A correlação com a primeira obra é estabelecida por alguns aspectos apresentados: é a mesma cidade onde se desenrola a trama das duas histórias, e alguns personagens são retomados, como a mulher que não cegou e seu marido. No entanto, em Ensaio sobre a lucidez, é estabelecida a ironia do que é a lucidez, pois o caos político que se constitui é atribuído, no final, à mulher que não cegou, é ela que recebe a culpa da ausência dos votantes por ser diferente. Consequência disso é que ela é assassinada, pois lucidamente é essa a escolha dos chefes políticos do país.

Os direitos sociais são retirados dos personagens e sociedade de Ensaios sobre a lucidez, pois ficam prisioneiros, isolados e impossibilitados de contatar o resto do país, pois poderiam provocar um novo surto na nação e talvez muito mais perigoso do que a cegueira branca, pois levava à reflexão.
O fundamento essencial da literatura se faz presente então, levar à reflexão através das palavras e da tessitura das histórias e enredos, libertando todos que se debruçam sobre a escritura das prisões dos pensamentos fechados. É como a reflexão platônica expressa sobre a questão do ser prisioneiro: “Estranho quadro e estranhos prisioneiros são esses de que tu falas […] Semelhantes a nós” (PLATÃO, p. 210). O que aprisiona o sujeito é ele mesmo e seus pensamentos, a agudeza reflexiva liberta, mas causa apreensão, e a literatura traz e traduz esses anseios e reflexões, pois é ela o espaço de contemplação do homem, é ela o lugar de expressão do íntimo e do geral do mundo e das sociedades.

A Literatura tem como presença a denúncia, através da reflexão quando vozes que contam a história expõem situações limites, únicas e, muitas vezes, tão imaginárias que assumem uma veracidade pelo insólito do que propõem. O mundo ficcional entrelaça-se no real, juntos e separados, mas amplamente entrecruzados, e apresenta as sociedades e seus sujeitos no mais íntimo e arbitrário do que possuem, fundando uma terceira margem, em que o navegar de um lado a outro não determina o valor de sua leitura, mas, sim, elabora o entrelugar dos mundos possíveis e assimilados pelo outro, o leitor.

¹ BORDINI, Maria da Glória(org.). Erico Verissimo A liberdade de escrever: entrevistas sobre literatura e política. Porto Alegre: Editora da Universidade/UFRGS/Edipucrs, Prefeitura Municipal de Porto Alegre, 1997. Coleção Engenho e Arte; 4., pp. 28-9.

²ABDALA JÚNIOR, Benjamin. Literatura, história e política: literaturas de língua portuguesa no século XX. 2. Ed. São Paulo: Ateliê Editorial, 2007. p. 14.

Giele Rocha Dorneles
Professora de Língua
Portuguesa e Literatura
Fundação Liberato

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