José Edimar de Souza
Técnico em Educação, Fundação Liberato
Carregamos conosco a memória de muitas tramas, o corpo molhado de nossas histórias, de nossa cultura: no sentido freireano, a memória, às vezes difusa, às vezes nítida, clara, de ruas da infância, da adolescência. Ao buscar as memórias, atualizamos nosso saber sobre nossa trajetória e atualizamos nossa história. E como um fio que precisa ser tramado para constituir uma forma/figura objetiva na realidade, a agregação de diferentes fios (caminhos) se conectam, tecendo cenários dos contextos que possibilitam compreender, ler fragmentos das trajetórias de vida e profissional.
Somos sujeitos produtores de memórias, lembranças que se compõem na medida em que avançamos no tempo. Enquanto sentimos o tempo perpassar nosso ser, capturamos fragmentos daqueles que contribuíram em nosso processo de constituição. Construímo-nos sujeitos na história na mesma proporção que transpiramos e tentamos compreender a realidade, decifrar as insígnias que nos impõe o cotidiano.
Os acontecimentos entrecruzam memórias de lugares, cheiros, imagens que saltam o tempo cronológico e anestesiam os fatos, permitindo ler e interpretar novamente aquilo que fizemos, quem fomos e compartilhamos…, traduzindo a nostalgia da recordação em um importante elemento da cultura material.
A memória, utilizada como documento, é entendida no sentido que trata Nora, sendo essa uma fonte para a história. Ao diferenciar a memória como história vivida e história como produção intelectual, o mesmo autor afirma que história e memória não são sinônimos, pois “a memória é a vida carregada por um grupo em permanente evolução, aberta à dialética. A história é a reconstrução sempre problemática do passado, demanda análise e discurso crítico” (NORA, 1993, p. 9). Assim, a memória, não sendo a História, é um dos indícios, documentos de que se serve o historiador para produzir leituras do passado, do vivido pelos indivíduos, daquilo de que se lembram e se esquecem a um só tempo, produzindo no presente determinadas versões do passado.
As memórias não sendo história se inventam e reinventam nas “lentes investigativas” que traduzem realidades reconstruídas. Recantos desativados das escolas e gavetas esquecidas de muitos armários de professores e professoras guardam registros do cotidiano escolar, como arquivos pessoais, cartas, bilhetes, memoriais, relatórios pedagógicos ou burocráticos. As memórias orais e escritas representam, neste sentido, a diversidade de documentos, que inventariados, permitem conhecer um pouco da cultura escolar e pedagógica.
Contudo, a história da educação, principalmente da cultura material escolar, ainda configura-se um campo empírico pouco explorado pela pesquisa científica.
Para além da formação da memória, Halbwachs aponta que as lembranças podem, a partir da vivência em grupo, ser reconstruídas ou simuladas. Podemos criar representações do passado assentadas na percepção de outras pessoas, no que imaginamos ter acontecido ou pela internalização de representações de uma memória histórica. A lembrança, de acordo com Halbwachs, “é uma imagem engajada em outras imagens” (2006, p. 77).
Considerando a memória como “ato de lembrar e de esquecer”, como teia que trama e engaja narrativas em um percurso estabelecido para se atingir determinado conhecimento daquilo que se propõe a investigar, as memórias de trajetórias docentes revelam uma parte importante e que ainda está por ser escrita, ou seja, a história docente das práticas culturais e pedagógicas da escola moderna, tal qual conhecemos hoje.
Além disso, a partir das memórias evocadas pelos sujeitos e organizadas narrativamente talvez seja possível descobrir um pouco daquilo de que nos constituímos, afinal, como rememora um nativo de uma tribo indígena gaúcha, “somos a continuação de um fio que nasceu há muito tempo atrás, vindo de outros lugares, iniciado por outras pessoas, remendado, costurado e continuado por nós. Somos seres inconclusos e com muito a aprender”.
Referências:
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2006.
NORA, Pierre. Entre memória e História: a problemática dos lugares. 10. ed. São Paulo: Educ, 1993.