Pausa: manutenção corretiva

pausa

Provavelmente, alguns ditos bons leitores me criticariam pelo que vou confessar agora: eu, à contramão do código de ética da leitura, abandono títulos – basta! –, simples assim. Os meus motivos podem variar de obra para obra, mas via de regra e em termos de confissão, vejo algo de comum entre os vários livros que larguei para cima da prateleira com um marca-páginas cravado lá pela 50 e poucos. É como se não fosse o momento.

Momentos. Certamente, momentos são diferentes para as pessoas. Variam por opinião, por senso, por capacidade intelectual, por vontade e por falta de vontade também. Essa última, o ócio, quando o estado emocional é tão egoísta que não suporta mais informação vinda de fora para dentro, é autossuficiente. Só que eu ainda bato o pé, porque penso que mesmo no ócio, essa coisa de desligamento, mesmo assim, ainda há o que se possa ler, o que vá fazer algum sentido, não para acrescentar algo, mas talvez para melhorar o que já está, reorganizar o que está bagunçado e assentar as ideias.

É discurso quase que padrão dos bons leitores dizer que não conseguem parar o livro no meio, que aguentam no osso devorar até a última linha, mastigam a pimenta que nem macho e batem na mesa – o copo d’água se pede depois. Mas eu me poupo dessa, não me torturo. Começo e vou até onde me agrada, afinal, não posso me desgostar da literatura.

Muito disso tem a ver com a formação crescente de uma sociedade afastada dos livros. As pessoas fazem mais por obrigação do que “por esporte”. A geração da televisão só é da televisão porque esse bendito grupo foi apresentado a um tal de Machado de Assis e sua companhia antes do momento certo. É como se houvesse um atropelamento, não fosse dado tempo para o amadurecimento intelectual – deixe que leiam toda a série Harry Potter antes de um encontro mais formal com o velho Brás Cubas. Citando a série: vai ter mais magia, afinal vai ser o momento.

De uns tempos para cá, cada vez que saio, tenho comprado um livro. De crônica. É o que tem me agradado ler nos últimos tempos (não sei precisar exatamente desde quando). Não tenho tido paciência para romances ou outros gêneros – esses têm me soado cansativos. De uns tempos para cá, parece que eu tenho sido mais dinâmico e isso é um dos motivos, com certeza, da mudança de estilo – é como se a vida cotidiana estivesse ali e fosse a garantia de que eu não sou o único a acordar na segunda de manhã no frio de outono antes das sete – bom saber! –, não sou o único a findar as atribuições às seis da tarde, pegar o metrô, chegar e estar de alma lavada, depois de um banho e uma boa janta.

Não tenho a consciência pesada, então, volto ao assunto: caso o leitor que me lê agora não tenha se desgostado quando disse que às vezes o Harry Potter pode ser mais eficiente do que os clássicos do vestibular desde a década de 60 (chutei a data, admito), provavelmente está no mesmo barco que eu, então, lá vão algumas sugestões: Martha Medeiros, Cláudia Laitano e Carpinejar, que, entre outras coisas, regam o cotidiano e fazem da banalidade da “vida mundana” algo digno de poesia em plena prosa – pode ser um livro ou mesmo uma crônica da ZH de domingo. Talvez, o efeito que tem para mim seja o mesmo para você. Ou talvez eu esteja redondamente enganado (não ponho a mão no fogo), afinal, isso tudo pode ser mais um amontoado de previsibilidade se a disposição e o estado de espírito de porco ditar que é a hora de Kafka, Proust, Nietzsche ou Bukowski ou Harry Potter. No campo do talvez: talvez te valha a pena.

Eu gostaria de terminar esse texto com uma frase entre as aspas de uma lenda literária, mas como não me calha nada à memória, abraço uma máxima popular que tudo tem a ver com o que quis dizer: “dê tempo ao tempo”. Se isso vale para a solução de qualquer problema, vai ver dá certo com a falta de gosto pela leitura da geração atual. Quem sabe. Pode ser um palpite errado, mas só se arrisca manutenção corretiva naquilo que já está torto e, como está, agora é o momento – e isso não é palpite.

Filipe Barbosa Cieslak Ex-Aluno do Curso Técnico de Eletrotécnica, Fundação Liberato

Filipe Barbosa Cieslak
Ex-Aluno do Curso Técnico de Eletrotécnica, Fundação Liberato

 

4 Comments

on “Pausa: manutenção corretiva
4 Comments on “Pausa: manutenção corretiva
  1. Ótimo texto!

    Concordo que temos que nos dedicar a leitura com calma, “dar tempo ao tempo”, e largar um livro que não nos agrada no momento. Sempre é possível voltar pra ele num outro dia!

    E com certeza um romance com um vocabulário, temas e fluidez narrativa como Harry Potter é uma ponte de introdução à literatura. A série Harry Potter foi exatamente a minha ponte. A ponte que me fez descobrir os prazeres de seguir lendo mesmo quando parecia cansativo demais, a ponte que me fazia ler mesmo quando o mundo ao redor parecia correr, a ponte que me fez ver a importância de histórias longas para nos conectar aos personagens e às suas histórias e assim torná-las mais relevantes, fazer com que aprendamos mais com elas.

    Hogwarts e o mundo dos bruxos parecem hoje velhos amigos, amigos que me incentivam a continuar lendo romances (e textos online) cada vez mais longos e mais complexos. A eles e a ti agradeço por essa reflexão: muito obrigado!

    Report comment

  2. Escrevi esse texto em algum momento do ano passado e agora abro a Expressão Digital (cogitando que talvez ele estivesse publicado) e cá está! E com direito até a comentário! Passado esse tempo aí desde que eu o escrevi até agora, consigo ver, antes de tudo, o quanto tem de verdade no que eu trouxe, e é isso que vale de verdade na literatura (ainda que essa verdade seja um mero fingimento). Nesse caso, falei de mim, do que eu pensava na época, e talvez as dicas daquele momento não sejam as mesmas que eu daria agora, mas o texto serve como um bom parâmetro para comparação, tanto das minhas fases, como uma reflexão, das suas, para quem lê.
    Obrigado por ter lido, pelo elogio e pela dica, Rafael. Abraço.

    Report comment

  3. Fui lendo e gostando, sem saber quem tinha escrito, até verificar que eram tuas palavras Filipe! Eu concordo, quando não avanço na leitura de um livro paro ali mesmo, não tenho tempo a perder. Mas quando me encanto em um romance, fico com pena quando chega no final e tenho que me separar dos personagens, acabo me apegando, parece que vivendo aquela história! No ano passado me reencontrei com o livro do Saramago, A Caverna, era o momento certo para aquela leitura, forte e densa, mesclada de muita delicadeza a relação dos personagens . Acredito que as pessoas têm ritmos, sensações, emoções e momentos que devem ser respeitados quando se trata de leitura. Um abração Filipe.

    Report comment

Deixe uma resposta

O seu endereço de email não será publicado Campos obrigatórios são marcados *