ENTREVISTA COM Maria Inês Utzig Zulke

entrevista

Maria Inês Utzig  Zulke é graduada em Psicologia, especialista em Psicologia da Educação e mestre em Psicologia Social e Institucional. Foi Diretora Executiva da Fundação Liberato por três mandatos (2000-2002/ 2006-2008/ 2009-2011) e trabalhou como Gerente Executiva de um Programa de Educação Profissional no governo do estado do Rio Grande do Sul (2012-2014). É psicóloga da Fundação desde 1989 e é como psicóloga que nos fala agora sobre os percalços de uma pandemia causada pelo novo coronavírus que transformou a vida de todos no mundo sem pedir licença.

Nesta entrevista, Maria Inês nos mostra seu ponto de vista e nos estimula a refletir sobre esse tema tão preocupante.

Entrevistadores: André Luis Viegas e Carmem Bica Beltrame e Daiana Campani


Maria Inês Utzig Zulke

Maria Inês Utzig Zulke

 

 

Como administrar as tarefas de casa e do trabalho em um momento em que as fronteiras entre esses dois espaços não estão bem definidas?

O trabalho remoto já vinha acontecendo, porém no contexto da pandemia, ele precisou ser adotado rapidamente e de forma exclusiva, no caso da atividade docente. Essa mudança exigiu a conformação do espaço doméstico como espaço de trabalho, tornando menos claros os limites entre o tempo de trabalho e de vida. Em casa o trabalho acaba acontecendo o tempo todo. No caso dos professores, existem as tarefas de preparação, a correção, os atendimentos às demandas dos alunos, as reuniões, etc. Enquanto isso, as tarefas com a alimentação, limpeza da casa, cuidado com os filhos, mercado e outras tantas que precisam igualmente ser feitas. Essa realidade tem evidenciado, inclusive, as diferenças vivenciadas pelos gêneros, conforme demonstram diversas pesquisas realizadas durante a pandemia. Então, é muito importante delimitar e respeitar os horários de trabalho o máximo possível, estabelecendo combinações, divisões de tarefas. Existem estudos, desde antes da pandemia, que apontam para o adoecimento dos trabalhadores quando se sobrepõem o trabalho e a vida privada, sem espaço para o lazer. Trata-se de um tema contemporâneo de enorme relevância. Por isso, é fundamental resguardar essas fronteiras na saúde, preventivamente.

Que ações podem ser feitas para que consigamos demarcar mais essas fronteiras em um momento em que a tecnologia nos deixa acessíveis a todos o tempo todo?

Como falei na questão anterior, a delimitação dessas fronteiras é uma questão de saúde, por mais que seja difícil fazer essa separação. Então, é bem importante estabelecer tempo para o trabalho, para as tarefas domésticas e, também, para o desfrute de outras possibilidades que não sejam acompanhadas da virtualidade. Ou seja, deixar um pouco de lado os equipamentos tecnológicos para uma dedicação mais integral nas atividades de lazer, de leitura, de convivência familiar, de ouvir uma música, de dançar, de mexer na terra.

Têm circulado alguns materiais que recomendam cuidados para auxiliar na organização dos espaços e dos tempos, como não ficar o dia todo de pijama, reservar lugar e horários para as atividades de trabalho, enfim, alguns hábitos que demarcam uma “saída simbólica do espaço doméstico”.  Mas, segue valendo a máxima de que cada família, cada agrupamento, tem que fazer as escolhas possíveis, de acordo com seu estilo de vida, ao seu espaço de morada. Mesmo porque a intensa convivência gera conflitos e demanda conversas,  combinações e repactuações permanentes.

No início da quarentena, quando ainda não se registravam óbitos em nosso estado, a expressão “vai passar” estava sendo muito usada nos meios de comunicação. Passaram-se mais de oito meses, e a necessidade de distanciamento social não passou. Como lidar com a sensação de não se ter uma perspectiva clara de quando e como será esse retorno?

É uma travessia no deserto, como define o psicanalista Chris Dunker. Não dá para ficar perguntando quando é que vai chegar ou quando é que vai terminar, infelizmente. O melhor a fazer é reconhecer a excepcionalidade desse tempo e  idealizar o possível. É necessário exercitar a paciência, buscando dar conta do que se consegue. Ter um pouco mais de atenção com sua própria saúde mental, respeitando os seus limites, se observando, identificando estratégias que aliviem o mal-estar e, se precisar, pedir ajuda. Todos estamos sofrendo, com medo de algo que não se conhece direito e que não se sabe quando vai embora.

Embora, neste momento, já se evidencie a retomada gradual da vida fora do isolamento social, a situação requer ainda muita atenção e cautela. Notícias recentes nos mostram a existência de uma segunda onda do coronavírus na Europa. A situação ainda é grave, mesmo com a expectativa promissora da vacina. Por isso, permanece a recomendação de cuidados e permanência da adoção de todos os protocolos sanitários recomendados pela comunidade científica.

Importante dizer que o sofrimento no contexto da pandemia tem sido agravado por alguns fatores particulares da realidade brasileira. O primeiro deles é a enorme desigualdade social que produz efeitos desiguais, penalizando ainda mais a sofrida população vulnerável. O segundo diz respeito ao papel simbólico desempenhado pela maior autoridade do país, que assumiu uma postura de negação da ciência, de diminuir a gravidade da pandemia, de desrespeitar o distanciamento social, entre outras atitudes. Esses gestos confundiram a população e dificultaram a adesão plena dos protocolos recomendados pelas autoridades sanitárias.

Estamos vivendo um momento único em função do novo coronavírus. Tempo de isolamento social, de distanciamento, de suspensão das aulas presenciais, etc. Qual é o saldo emocional de tudo isso?

Sim, é um momento único que não encontra paralelo na história da humanidade.  O distanciamento social pode ser considerado um desafio para a saúde mental. Há um sentimento de desamparo diante de um mal invisível que não tem rosto e que pode vir de dentro e de fora do nosso corpo. Ele pode estar em qualquer lugar e representa um perigo permanente, o que dispara o gatilho da tensão, do medo a todo instante. Essa situação mobiliza a nossa angústia. Lidar com o isolamento não é fácil para a maioria das pessoas, sobretudo para quem já tem uma insegurança psíquica. Assim, a pandemia tende a agravar o estado emocional de quem já tem quadros de fobia, de ansiedade, de depressão.  E a impossibilidade de utilizar os recursos para enfrentar o sofrimento, tais como viagens, passeios, encontros sociais, etc, contribuem ainda mais para o seu agravamento.

Já se têm registros do aumento nos casos de depressão, ansiedade, fobia e, também, do aumento da demanda por atendimento psicológico, especialmente por parte da população de baixa renda. Por isso, será necessário pensar para o pós-pandemia o incremento da presença de profissionais da área ‘psi’ no sistema público de saúde e nas instituições em geral para oferecer assistência adequada.

Mas há que se destacar a capacidade de resistência individual, através da criatividade artística, da disponibilização de ajuda profissional acessível e de solidariedade coletiva que tem ajudado muita gente nesta travessia.

Como é ser psicóloga no contexto da pandemia?

Tem sido um aprendizado instigante, afinal, fazer um trabalho de escuta a partir de plataformas digitais é algo novo na minha atividade profissional. Exige uma readequação importante porque a linguagem digital envolve uma relação corporal, empática, diferente. Mas, graças a essas ferramentas virtuais tem sido possível a realização do trabalho e a construção de iniciativas coletivas de apoio e de cuidado para com a saúde mental.

Também tenho acompanhado as produções, no campo do pensamento, de diversas áreas do conhecimento para auxiliar na compreensão desse momento tão singular da nossa história. De certa forma, essa experiência nos possibilita repensar um mundo que entrou em colapso e que não estava bom, em todos os sentidos.

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