CONTO: BOLT

 

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A ideia surgiu em uma atividade de espanhol proposta pela professora Cristiane Alchimowich. Deveríamos submeter um relato breve de autoria própria para um concurso com o tema da pandemia. Foi uma tarefa difícil, visto que cada país suporta as atuais condições de acordo com fatores político-econômicos distintos. Óbvio que vivenciar a mesma doença traz consigo experiências compartilhadas como o isolamento social, medidas de segurança, vacinas, etc.; entretanto, com este texto, propus salientar justamente as singularidades que o Brasil comporta nesse momento de crise.

O texto cumpre um papel de choque de realidade que vem para “sabotar seu raciocínio, para abalar seu sistema nervoso e sanguíneo”, como buscava Racionais em suas músicas. Em muitos momentos, ele pode confundir o leitor em relação ao tempo e ao espaço e o fazer se questionar: Afinal, como é essa personagem?

Não se enganem! A sensação de estar desnorteado e se questionar se vivenciamos o presente ou uma memória do passado se repetindo é proposital. É como um trauma: feridas que cicatrizam e nos acostumam com o tempo e são cutucadas em momentos de crise, de gatilhos. O Brasil e os brasileiros têm muitas feridas: elas estão expostas e sangram. Esta história é só mais um recorte da vida de um desses brasileiros. A subjetividade e o fluxo de consciência evocados em um personagem jovem, tão confuso e vulnerável quanto os rumos de seu país. É uma viagem na cabeça do narrador, perambulamos por seus sentimentos, pensamentos, lembranças, traumas, como ocorre com as personagens únicas de Clarice Lispector em “A Hora da Estrela” ou “Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres”.

A linguagem clama por leitores atentos, tenta resgatar o dia a dia, a identificação com gírias e vícios de linguagem cada vez mais incorporados em nossa forma de se comunicar pela internet. Algumas informações não foram mencionadas, no intuito de que o leitor perceba uma referência cultural, como na obra “Vício Inerente”, de Thomas Pynchon. Outro autor que possui o mesmo estilo, porém brasileiro, é Daniel Galera, um dos precursores do uso da internet para a literatura. Assim como em seus livros, a estrutura do texto possui falas de personagens dispersas, seguidas de digressões do narrador (um dos motivos que faz o texto ultrapassar a marca de 30 linhas).

Por fim, gostaria de finalizar relembrando que somos todos homens e mulheres de nosso tempo; portanto, nossos pensamentos e ações são reflexos disso. Como boa “pós-moderna” que sou, escrevo sem muitas preocupações, sem regras e precisões, misturando o real com o imaginário com muita espontaneidade.

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BOLT

Terça-feira, 8 horas e 46 minutos. Vou caminhando em direção ao beco, estaria na escola agora, mas, Porto Alegre, aqui estou mais um dia. Seguro firme nossa caixa de louças que machuca meu braço. A vontade que eu tinha era de estilhaçá-las em mil pedaços, incontáveis, mas, se eu fizer isso, não vamos ter no que comer. Lembro do quadro, das cadeiras, do caderno em branco. Nunca das aulas. O professor me chamava de “filha” após explicar meus erros. O problema é que eu gostava. Odiava as paredes laranjas, tijolos de argila, teto azul. Me falavam de teoremas, proporção, “esse é o x da questão” e eu pensando quantos lotes ia precisar vender pra voltar com comida pra casa. Novo dia, novo dinheiro a ser ganho. Não tenho saudades da escola, não preciso de dicionário pra escrever.

Facção Central estourando no fone, eles cantam: “O inferno é tão perto que não dá pra escapar”. Penso em como Febem ecoa na minha mente nesse momento: “O plano segue o mesmo: tirar a mãe do sufoco. ” Eu queria pedir ajuda, queria contar para alguém, mas quem?

Rita… Ruiva de cabelos ondulados, que conheci dois meses atrás, numa pedalada de 35 minutos e 58 degraus. É quente. ‘Ding Dong’…

“Entrega pra você, madame. Sushi do 212”.

A ‘lavagirl’ de condomínio abre a porta e encosta sua mão na minha para pegar o sushi.

“Vai bem, né? ”

Disse ela, sem máscara.

“Hum? Olha moça, eu sim, na medida do alcançável, só não sei esse seu peixe aí. ”

Ela gargalhou, exibindo seus dentes brancos, retos. Ninguém nunca ria das minhas piadas toscas, por quê ela? Há! Educação. Só podia mesmo! Patricinha de apê tirando onda com a minha cara, vê se eu mereço…

“Toma. ”

“Rapaz! Dez contos de gorjeta, guria? Tu tá é doida, isso é mais do que eu recebi pra trazer esse teu peixe fedido aí! ”

“Você devia experimentar um dia. ”

Ela fecha a porta. Trancafia daqui, chaveia de lá. Desci correndo aqueles malditos degraus, com medo de que, chegando ao térreo, minha ‘bike’ não estivesse mais lá. Ufa! Me deparo com a magrelinha sã e salva. Subo. Encaro aquela nota e a seguro como se fosse escapar a qualquer momento. A maior que havia recebido hoje, “a de valor”, como dizem os meus. Estava prestes a enfiar a preciosa no bolso, quando notei um número inscrito nela, em letras miúdas. Escrevo uma mensagem qualquer, pensando melhor no que eu poderia dizer e me imagino falando com ela no ‘zap’. Não envio, apenas volto a pedalar. As ruas incendeiam em luzes de postes e explodem em gritos e gargalhadas dos passantes. Bebuns, prostitutas e cachorros de rua. Porto Alegre vibra e não passam das 23 horas. Bip. Mensagem de desconhecido. O que? Eu enviei a mensagem? Ela me chama pra sair. Só se for agora! Vou descer! Que delícia, pode crer! E me junto aos porto-alegrenses, aos brasileiros. Me acabo em alegrias. Alucinados, dopados, convivendo com o irreal. A paranoia. A abordagem de rotina.

“Epa! Epa! Tá vindo de onde, tá indo pra onde?”

“E essa bike aí? Me passa a nota fiscal desse produto aí”

Sempre eles. Fardados. Os tais “homens de bem”.

“Que nota? Sei de nota nenhuma não, moço. ”

“Cala essa sua boca, senão vai ter confisco! ”

“Ih! Cabelinho cheirosinho! Parece até menina, olha aí. ”

Pelos homens da lei, os homens de verdade. Pra mim, não passam de um bicho esquisito… Você nunca sabe se eles querem te foder, espancar, ou os dois.  Aconteceu na mesma pista. Eu tinha 14 anos e tentava o ‘kickflip’. Meu irmão que tinha passado. Pé firme no ‘shape’.

“Mão na cabeça, vagabundo! ”

Perguntam do relógio do meu irmão… A tal da procedência.

“Com todo respeito, senhor, tá preocupado com as minhas contas faz o pix. ”

Se tem suborno, tudo certo. O crime tá aí e sempre vai estar. Eles dizem que o ódio está no nosso DNA. Eu acho que é justamente o contrário. Tiro, porrada e bomba na periferia. Área de risco é só na favela, né? Por que será? Projetam sua violência em nós, para justificar a deles. Eles dizem que: nós estupramos, nós matamos, nós roubamos, mas tudo que eu vejo é só homem fardado invadindo nossas casas, quebrando tudo em busca de supostas drogas e levando meus amigos. Destroem sonhos que demoramos três gerações pra construir. Não temos arroz pra comer e eles vêm pedindo droga, mas, sabemos muito bem que são eles que as têm.

“Algema esse aí e bota na viatura. ”

Meu irmão injetava pra se sentir um herói. Sentir que podia salvar mamãe, nem que durasse por algumas horas. Família tradicional brasileira. Ele só queria se sentir calmo e feliz. Banalidades. Ter futuro, ser de respeito. Que droga! Só mais um naco e seu caráter sumiu. Tão comum. Forças que não se medem. Ele reagiu, tentou lutar. E só o que teve foi o sangue jorrando de seu nariz… o tiro acertando onde não devia. Os homens de bem depois de mandarem limpar a sujeira, “cuidaram” de mim.

“Vou te ensinar a ser mulher de verdade, é isso que você tá precisando”

Volto chorando pra vila. De novo. Da mesma pista. ‘Dejavu’. Essa mesma sensação de já ter vivido isso um milhão de vezes e ter perdido um milhão de planos, um amigo, um irmão. Deixo a dignidade, 24 entregas perdidas em uma só noite, um dente e um desamor. Volto porque preciso. Na fuga, reverberam na cabeça gritos, choros e o medo da minha mãe apanhar de novo. Perder tudo. Perder tudo, de novo. Recomeçar do zero. De novo. Mais um dia. Tudo por causa de um filete de farinha.

“Ui! Mulherzinha não apanha! ”

“Dessa vez passa, se manca pra casa! ”

“Tentando dopar as moças, né? Traficante de…”

Bateu. A droga que as ‘patrícia’ de apê me deram no rolê. A polícia. Corro quase sem rumo. Brasil. Escuto sirenes atrás de mim. Sinto tiros tentando me atingir. Tentando me calar. Não é preciso ser Marielle, não é preciso morrer pra ser silenciado. Vejo o mundo explodir em dores. Peço socorro. Berro o mais alto que consigo. Mais uma vez ninguém me escuta…. Ou será que eles só fingem?

Vejo corpos ao chão e eu volto a pedalar. O tiro sempre acerta onde não deveria. Embora eu saiba que o mundo é um moinho e que em cada esquina cai um pouco a minha vida, meu corpo é fechado, selado pelo sopro de Iemanjá, ’iyé’, assim conhecido pelos iorubás, o pó de axé. Não vou deixar Inaê me carregar para junto das águas do mar, não vou deixar a vida me levar. Já tentaram antes. Fugir, quebrar as correntes. Sempre que damos um passo, eles nos empurram de volta para o abismo com mais força. Eu vejo no mesmo lugar milhões de feridas pra estancar. Volto a pedalar e estou duvidando alguém me alcançar.

Foto da autora

Andressa Soder Rocznieski – Estudante da Fundação Liberato

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