A CRÔNICA E A LITERATURA: “A VIDA VEM EM ONDAS1”…
No último 23 de junho, comemorou-se o centenário da morte de João do Rio, pseudônimo de João Paulo Emílio Cristóvão dos Santos Coelho Barreto, o primeiro jornalista/escritor a se tornar um voyeur e perambular pelas ruas do Rio de Janeiro a fim de encontrar, ali, a matéria-prima de seus textos. Dentre as reportagens divulgadas na mídia na ocasião, uma delas desperta curiosidade pelo destaque concedido a uma crônica do autor, datada de 16 de agosto de 1903, em que João do Rio faz referência ao nosso tão atualmente conhecido “negacionismo”, na época manifestado em oposição — veja-se a coincidência! — à campanha de vacinação contra a varíola. Escreveu o cronista: “A vacinação gratuita aí está: ao alcance de todos, pobres e ricos […]. E não houve razões bastantes para convencer o cavalheiro que entrou berrando e berrando saiu protestando contra a vacinação em nome dos sagrados princípios de 1889 e em nome da liberdade dos cidadãos”2. Sem colocar em dúvida a data de publicação do texto, há aspectos desse gênero discursivo que explicam a identificação de seu conteúdo com o que vivem os leitores contemporâneos.
Uma das características mais básicas da crônica é sua efemeridade. Tendo como berço os rodapés dos jornais impressos, ela nasceu como um apetitoso digestivo em meio aos nem sempre doces relatos do dia a dia. Era um alívio ao leitor que procurava informar-se sobre a vida agitada das cidades: na crônica, o cidadão encontrava assuntos mais amenos, relacionados aos episódios culturais do momento. Assim, após realizada a sua leitura, lá ia ela, junto às demais folhas do jornal, para o lixo ou para compor os embrulhos devidos e possíveis. No dia seguinte, novas notícias e novas crônicas surgiam para saciar a curiosidade dos leitores.
Foi Rubem Braga quem percebeu o tênue limite entre “o mundo puro e infinito de sempre e o mundo precário e quadriculado de todo dia” (SÁ, 1987, p. 18). Com ele, a crônica é transposta para o livro e assume seu lugar definitivo na esfera literária. Capturando o instante que revela muito da complexidade humana, suas crônicas, carregadas de lirismo reflexivo, aproximam-se de outros gêneros da literatura e da sua atemporalidade característica.
E a vida, como todos sabem, é cíclica. É puro movimento. É um “indo e vindo infinito”, como bem disse o compositor. É “[…] mudança, uma exuberância de forças, um excesso. Não existe uma essência, um ponto fixo nas coisas, mas um fluxo contínuo, em constante transformação” (MOSÉ, 2018, p. 133). Se isso sugere que os eventos cotidianos mantêm certa relação com ocorrências anteriores, pode igualmente contribuir para o entendimento de que algumas crônicas serão eternas em sua análise sobre a vida em sociedade. A crônica, presa que é a tudo que diz respeito ao humano, acaba materializando os sentimentos, reações, anseios das pessoas, independente da época em que se situam. E quem também soube mostrar como se dá esse processo foi o gaúcho Moacyr Scliar.
Mais contemporâneo a nós se comparado a João do Rio, esse nosso “centauro dos pampas” (SCLIAR, 2012), cuja precoce partida completou uma década em fevereiro de 2021, escreveu crônicas por mais de trinta anos no jornal Folha de São Paulo e durante quinze anos na Zero Hora. Na Folha, desenvolveu uma tarefa desafiadora: escrever um texto baseado em uma notícia publicada no exemplar do dia anterior. Era a união mais explícita entre o jornalismo e a literatura que a crônica possibilitou. E o estudo detalhado da produção de crônicas do autor reforça o espanto sobre sua atemporalidade, assim como toda boa literatura. Se alguém acha que os anos 90 se perderam no passado, por exemplo, lendo os textos de Scliar, verá que eles estão bem próximos.
Em uma de suas crônicas, Abolindo a abolição, publicada em 1999, o cronista apresenta um narrador que coloca o leitor frente a frente com a realidade da escravidão. Pela interação entre um proprietário de terras e um interlocutor identificado apenas pelo pronome “eles”, percebe-se que o discurso mal-intencionado e preso ao passado, que, conforme o proprietário, “era bom porque não tinha leis”, torna o indivíduo miserável e sem opção presa fácil do trabalho que humilha e anula qualquer possibilidade de sonho: “Vocês receberão para sempre alojamento e alimento. A única coisa que peço é: esqueçam salário, esqueçam o resto. Esqueçam o mundo lá fora. O mundo de vocês agora é esta fazenda” (SCLIAR, 2002, p. 64). O que pode parecer um absurdo em pleno século XXI para os menos informados é justamente a situação de precariedade e exploração vivida hoje por muitos homens e mulheres que abrem mão de todos os direitos trabalhistas para continuar sobrevivendo. Felizmente, Scliar, com a empatia que lhe era peculiar, poupa seu leitor da frustração de um final trágico devido à submissão humana e coloca em cena um promotor, alguém que chega “com aquela história de direitos”. A justiça, traduzida na personagem, foi e sempre será a arma de luta contra a desigualdade.
Seja trazendo à discussão os perigos reais de um negacionismo cego, seja lembrando os horrores da escravidão e a atuação de empresários e donos de terra que só visam ao lucro, acima mesmo da vida humana, a crônica, como toda literatura, não se encerra no ponto final do texto, na edição passada do jornal, na página lida do livro: ela pode ser eterna, profunda, intensa e marcante, como a experiência de vida de cada sujeito, trazendo, a cada nova onda, a lembrança daquilo que ninguém deve esquecer.
1 Fragmento da canção “Como uma onda”, de Lulu Santos
2 Fragmento da crônica de João do Rio, disponível em https://g1.globo.com/jornalnacional/noticia/2021/06/23/ha-100-anos-a-cidade-do-rio-de-janeiro-parava-para-se-despedir-de-joao-do rio.ghtml. Acesso em 27 jul 2021.
REFERÊNCIAS
MOSÉ, Viviane. Nietzsche e a grande política da linguagem. Petrópolis, RJ: Vozes, 2018. SÁ, Jorge de. A crônica. São Paulo: Ática, 1987.
SCLIAR, Moacyr. O imaginário cotidiano. São Paulo: Global, 2002.
SCLIAR, Moacyr. A poesia das coisas simples. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.