A expectativa de vida passou então a 77, 45 anos no Rio Grande do Sul¹. Essa notícia, assim como lembranças, fatos, filmes, livros e poemas têm me feito pensar.
Já tem algum tempo, as intermitências da morte têm sua parte em meus devaneios. As reflexões irônicas sobre sua constante e inevitável presença e seu triunfo sobre a soberba da humanidade – essa obra extraordinária de Saramago², lida nos primeiros meses de pandemia. De um fragmento da Lista de Schindler³, repete-se num canto qualquer da memória uma das dramáticas cenas finais: o remorso do personagem central, seu desespero, em prantos: “Se eu vendesse esse carro, poderia ter salvo mais oito pessoas! E esse broche, é de ouro, talvez salvasse mais duas pessoas, ou pelo menos uma pessoa. Uma pessoa, Stern, eu poderia ter salvo, por este broche de ouro!”.
Vejo um relógio regressivo, lembro-me do Curioso caso de Benjamin Button(4). Nasceu velho, foi ficando jovem e tem seu momento no filme um relógio que anda ao contrário. “Se o relógio, o tempo, andar ao contrário, terei meu filho de volta?”, era a dor marcada dessa forma.
A contagem regressiva segue! Setenta e sete vírgula quarenta e cinco anos – se tiver relativa sorte. Um tanto a mais se tiver um sopro de Niemeyer, ou uma patacoada de Dercy.
Mediano como sou, em quase tudo, melhor não contar com a sorte – ou com mais sorte do que já tive. Sem disfarce, já se foi mais ou menos metade!
A analogia com o futebol surge-me, inevitável. É preciso reconhecer, estou no segundo tempo. Posso torcer por acréscimos, posso cuidar-me bem, mas no final depende mais de uma combinação de acasos, pouco de mim.
É uma partida, dá para se pensar. Uma partida onde não é nada interessante ser um mero espectador. Na verdade, entra-se nessa trama já vencendo uma primeira disputa – no mínimo, com outros espermatozoides no momento da fecundação. Talvez houvesse torcida, talvez tenha sido um drible nos planejamentos dos que vieram antes de nós. De qualquer forma, aqui estamos.
Há embates, disputas, rixas, momentos em que só quero mesmo me livrar da bola. Um chutão, um bago, como dizíamos no idioma próprio do campinho. Coisas para esquecer. Jogo ralo, jogo baixo, esconder-se atrás da marcação. Em outros momentos, jogadas bizarras, gols perdidos ou em impedimento – lances vergonhosos. Sim, se pudesse manipular o relógio, em alguns momentos apenas, quanta coisa eu gostaria de poder anular. Não ter dito, não ter feito – ou dito diferente, feito de uma forma mais gentil. Mas não há volta, não há VAR, é preciso lidar com a vaia, com a reprovação, com o infortúnio. É bem sabido, a reprovação interna – e inútil – de jogadas passadas sabe ser muito mais cruel do que aquela que vem das arquibancadas ou dos companheiros de equipe, ou mesmo dos adversários.
E aquela bola nas costas? Lançada ou recebida, com consequências ruins ou piores. Não, não dá para voltar o lance. O relógio segue seu curso, indiferente, alheio à minha vontade, às minhas escolhas e ao meu sofrimento. Há quem diga que o tempo ensina. Talvez. Ou, quem sabe, nós é que podemos aproveitar a chance de fazer uma escolha melhor no próximo momento, se ele existir.
Quedas ao chão, joelhos arrebentados, canelas roxas. Só não se esborracha quem não se apresenta para o jogo. E por aí, quem sabe, algum lance de esmero, talvez com talento, uma leitura da oportunidade – aquele rebote que se oferece, limpo, goleira escancarada, onde, finalmente, o trabalho é apenas empurrar a bola para as redes. O grito, o abraço, a celebração, mesmo que representem pouco no tempo do relógio, duram uma eternidade nas memórias! Do companheiro de equipe, dos que ali estavam torcendo por ti, daqueles para quem você, afinal, dedica todo seu esforço. Vai, vai que a comemoração é merecida!
E, na segunda-feira, o jogo segue! Fecha o time, tenta não levar! Segura o jogo, busca uma outra brecha. Uma desatenção e lá se vai um revés. Uma perda, um gol contra – alguém que saiu antes da hora. Essa a pior sensação. Estamos aqui pelos nossos. Não pelos gols exatamente, estamos pelos que estimamos, queremos eles e os gols!
E o relógio segue. Indiferente.
Tenho pensado no tempo de trás para diante. Regressivo. E deixar a sonhada jogada para os minutos finais parece fazer cada vez menos sentido. O esfriar dos sonhos não precisa ser companheiro do passar das horas. Há vida demais em cada volta do ponteiro – sim, gosto dos tempos analógicos e lentos. Deixar para depois não leva em conta os riscos: o desacelerar dos reflexos, o acomodar-se em uma zona tranquila do campo ou ainda um inesperado cartão vermelho. Para não esquecer: é uma partida injusta! Entendemos algumas regras, há até alguma coisa escrita, mas as circunstâncias não estão todas postas.
Sendo um jogo assim, fugaz, pouco sentido faz a maior parte das preocupações. Tendo ao alcance um bom livro, uma boa conversa, uma subsistência razoável, saúde (bem mais valioso), um lambari no caniço, um guaraná aos domingos, já soube ser feliz. Se com o passar da vida aprendi, menos ainda preciso, nada vou poder levar. Por que, então, não manter leve o bagageiro?
Até que a partida adquira outro significado. Já que, da vida, é inevitável partir um dia.
1. Portal GZH. Expectativa de vida dos gaúchos chega a 77,45 anos. 26 jul 2022.
2. Saramago, José. As intermitências da morte. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
3. A lista de Schindler. 1993. Direção Steven Spielberg.
4. O curioso caso de Benjamin Button. 2008. Direção David Fincher.
Filosofou. Top.
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