Quase poeira

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Cinco horas, levanta antes do despertar do sol. Ainda na penumbra, enche a casa com o cheiro do café forte e bem passado no bule que há anos quer tentar trocar, mas a essa altura já virou seu companheiro. Não demora muito para ver a filha ainda com os cabelos embaraçados e seu primogênito já com a roupa da escola. Toma o café em goles grosseiros, depois da rápida prece em agradecimento ao pouco pão que ainda tinham como sobra do dia anterior.

A senhora, já com suas roupas costumeiras – não pode se vestir como bem quer para onde vai – pede a benção de sua mãe ao pegar cada filho pela mão e sair pela estrada de chão batido. Enquanto observam o novo-velho dia nascer ao horizonte, a poeira começa a dar espaço para os tijolos de paralelepípedo. Chegam na casa da irmã, é quase cedo demais para quase qualquer coisa, e ali ficam seus companheiros de jornada, acenando da porta e olhando ela apressar o passo para não perder o intermunicipal.

Sete horas, deixa a poeira para trás e leva consigo sua coragem e ferrenha fé. Passo a passo para fora do ônibus, o espaço é dado ao asfalto e à calçada arquitetada. O esquecimento de onde veio é minimamente obrigatório, o cheiro da grama recém-regada ou do queijo fedorento dali em diante a esmagaria. Entrou pela porta dos fundos quase como um procedimento padrão – ou pelo menos lhe diziam ser um procedimento padrão -, arrumou qualquer imperfeição em sua saia e tirou o vestígio de poeira dos cabelos rapidamente, virando-se para encontrar algo a fazer – não que fosse difícil fazer o tempo passar, sempre havia algo a ser feito. Aproveitava cada segundo daquele trabalho para se manter ocupada e eventualmente executá-lo com qualidade, mas rápido o suficiente para se mostrar exemplar, e caso não houvesse algo para fazer, inventava.

Com o sol escaldante no céu, serve à mulher e aos filhos o prato do dia, coisas mais amadas; não serve ao homem, pois sabe-se lá Deus onde está – um país com nomes complicados ao seu entendimento, talvez? Ou um hotel em uma montanha em algum lugar, quem sabe? -, o que sabe mesmo é rezar, rezar pela saúde dos filhos, que espera que estejam almoçando bem, pela mãe, que deve olhar por eles em qualquer lugar que esteja, ou pelo simples prato de arroz com feijão que comia na sua cozinha planejada.

Em meio aos lençóis, panelas e rodos, olha o relógio em um movimento praticamente automatizado, rítmico a essa altura. Suspirou com alívio ao ver os ponteiros marcando os números sete e doze. Tira o avental, em sua pequena área de serviço, e volta do mesmo jeito que veio; afinal, o que pensariam da pobre mulher se vissem aquela outra pobre mulher saindo por uma porta da frente? Asfalto, tijolos e poeira, pega as crianças pela mão e ouve atentamente o filho contar a história de como ralou o joelho e sua pequena falar do bolo que ajudou a tia fazer.

Procedimento padrão, os dois pequenos vão ao rápido banho, e logo em seguida vai a mãe. Ouvem o pouco do rádio e veem a pouca televisão que conseguem até o vigésimo primeiro toque do relógio que não possuem. Pedem bênção e deitam-se à maneira que conseguem, brincando mais um pouco até caírem de exaustão. Eles? Provavelmente dormem. Ela? Nem Deus sabe o que passa em sua cabeça.

Cinco horas, levanta antes do despertar do sol. Ainda na penumbra, enche a casa com o cheiro do café forte.

Dexter Pires Seider
Estudante do Curso Técnico de Química
Fundação Liberato

1º Lugar
Categoria Crônica
Liberarte 2022

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