A jaula do Bobo

jaula1

“LABOR SPES EST”

A frase acima estava escrita sobre os portões de Tungstein, a prisão-forte do Rei. E justamente por estes portões que ele entrou. Pobre rapaz…

Florêncio era um jovem alienista, mas que demonstrava já grande aptidão na “ciência”. Tinha pouca idade e já era apelidado de Parasclépio, “tal qual o deus da cura”. Aconteceu que, uns dias antes, ocorreu no palácio uma tragédia, sobre a qual não tenho o direito de falar, mas que resultou na prisão de Ácaso, o bobo da corte. Algum tempo se passou e notícias sobre o palhaço começaram a rondar na cidade e no castelo: o místico dom que ele tinha, a arte da persuasão, a maldição da loucura.

Quando chegaram aos seus ouvidos aqueles boatos, o Rei resolveu agir, trataria do caso do jogral na espera de que, desse modo, se dissipassem esses sombrios rumores. Conhecendo a fama de Florêncio, enviou-o até a prisão onde estava Ácaso, na esperança do doutor formular um diagnóstico sobre o que deveria ser feito àquele louco.

E agora, lá ele estava. Chegando ao pátio do prédio principal, pulou da charrete, cumprimentou os guardas e entrou no fortificado. Lá dentro, mostrou a carta timbrada do Rei a um dos soldados, que o levou até uma sala escura, com apenas uma porta e sem janelas.

— É aqui mesmo? — Florêncio perguntou-lhe.

— Sim, senhor. Apenas desça esse lance de escadas e lá ele estará — o guarda respondeu.

Assim, então, o jovem fez. A escadaria em espiral, feita de uma negra ardósia, era iluminada apenas por algumas poucas velas, criando um ar denso e pesado. Quando chegou no fim dos degraus, contemplou um corredor estreito que, mesmo lançando um certo pavor em seu peito, o atraía, inexplicavelmente.

Ele percorreu toda a sua métrica e, ao final, deparou-se com a cela de Ácaso.

— Hum… com licença, senhor… — A voz do médico da mente ecoou nas paredes daquele tenebroso lugar. Não houve resposta.

— Venho aqui em nome do Rei, tenho ordens explícitas para te examinar! — Exclamou.

— He he he… — Uma fraca risada se ouviu ao fundo da cela.

— Ácaso? Mostre-se!

— Sabe, o rei é um homem muito valoroso… muito gentil…

— Surpreende-me tais palavras serem proferidas, logo por ti.

— Por quê? Eu amo o rei! Por acaso, tens medo de palhaços?

E do meio das sombras, surge a figura de um homem (ou pelo menos, achamos que é um homem), magérrimo, baixo, com roupas de saltimbanco esfarrapadas e um afiado sorriso amarelado.

— Ama o Rei? Então por que fez o que fez!? Por que achas que estás aqui?

— Estou aqui porque o rei quis, porque ele gosta da minha pessoa!

— A filha dele está morta!

O pequeno diabo deu uma gargalhada, seguido de uma tosse seca. Disse:

— Certo, certo, mas vamos analisar os fatos: se o rei não gosta de mim, por que tu estás preso aí, enquanto livre me encontro?

— Ah, pronto! Mas deve ser insano mesmo…

— Ei… ei… escute-me…

— Escutar o quê? Não ouves o que fala? Era só o que me faltava, ficar discutindo com um louco…

— Mais surdo és tu, que ouves, mas não escuta, que enxergas, mas não vês… a sua majestade, na verdade, gostou tanto da minha “surpresinha” que até mandou construir uma cela, para manter toda a ignorância do mundo longe de mim! Percebeu, porém, que a cela estava ficando pequena, já que tamanha era a quantia… logo, mandou aumentar essa cela… primeiro tinha cercado todos meus aposentos, depois todo o palácio, então toda a capital, todo seu reino e, por fim, criou uma jaula que cerca o mundo inteiro e se trancou lá dentro… agora estou livre do lado de fora, enquanto vocês todos estão aí dentro, presos, na minha jaula!

Florêncio já havia falado com outros imperfeitos de juízo, mas esse em específico lhe chamou a atenção. Suas palavras, o modo de falar, os meticulosos trejeitos, tudo lhe parecia como mágica, ou melhor, como feitiço…

— Então, estou certo, não?

— Eu… eu nunca ouvi tamanha balbúrdia! — Disse, num tom grosseiro. — Tu que estás aprisionado, não eu. É óbvio que estou livre e muito livre!

— Rotterdam estava certo, meus elogios à loucura! Pobre doutor… achas que és livre?

— Claro que sim!

— Preso, de facto, és mais que qualquer um neste forte! Preso pelas cordas do rei… pelos grampos do dinheiro… pelas correntes dos poderosos… pelos grilhões da necedade… ahahaha, realmente, és muito livre! Eu sei, eu sei, eu que estou acorrentado, mas mais livre que tu sou! Na sua gaiola de liberdade, vives um sofisma de vida, fingindo que estás feliz, que qualquer coisa importa, que faz sentido… ah, veja só, além de enjaulado, és um hipócrita!

Liberdade. As palavras de Ácaso revolviam-se em torno da mente de Florêncio. Nunca antes um paciente tinha causado-lhe tamanho impacto. Não, ele estava caindo no seu jogo, não poderia se deixar levar por tais palavras! Olhou para aquele mentecapto, disse algumas ríspidas palavras bonitas, deu meia volta e saiu. O Bobo nem se importou e, numa triste gargalhada, sumiu em meio à penumbra do seu cativeiro.

De volta ao palácio real, o alienista foi ter com o Rei. Anunciado, entrou por aquele luxuoso salão do trono, prostrou-se e disse:

— Oh, Majestade, acabo de regressar do forte Tungstein, e a situação daquele louco não é preocupante… Ele não tem suas faculdades mentais em perfeito estado…

— Estás certo disso?

— Claro, por que me questionas isso?

— Sabe, Ácaso poderia ser idiota, mas não era tolo. Desde que o conheço, nunca faltou com a veracidade…

— Ah, mas meu Rei, tinhas que ter visto as coisas que ele falou de mim! Somente bobagens! Ahahah!

— Meu jovem… é nas palavras mais insanas que encontramos as maiores verdades.

Florêncio sentiu calafrio. Seria, pois, a verdade? Estaria Ácaso certo?

Ele regressou até sua casa. Já tinha saído daquela prisão há tempos, mas o ar ainda lhe parecia pesado. Por que ainda pensava sobre aquele assunto? Suas mãos suavam, seus joelhos tremiam; à noite, uma sensação de sufocamento tirava-lhe o sono… Sim, estava preso às palavras do louco. Com o passar do tempo, o doutor começou a parar de clinicar, evitava sair do seu lar ou ter contato com outras pessoas. Sua juventude parecia escorrer entre seus dedos.

Um dia, simplesmente não saiu mais de casa, não deu mais sinais de vida. Seus vizinhos, percebendo o comportamento incomum do médico, resolveram fazer-lhe uma visita. Já era tarde. Sobre a cama de cedro, jazia o corpo do jovem alienista, frio, mas com uma estranha feição de alívio. Sobre o piano da sala, encontraram seu testamento, além de um bilhete, escrito à mão. Este era rápido e direto, denotando o que tinha ocorrido. Eis seus dizeres:

“Não fiquem tristes, amigos. Alegrem-se. Agora, vejo-me livre, finalmente livre. Liberto estou da jaula do Bobo”.

Francisco Emannuel Soria Andrade
Estudante do Curso Técnico de Química
Fundação Liberato

1º Lugar
Categoria Conto
Liberarte 2022

Deixe uma resposta

O seu endereço de email não será publicado Campos obrigatórios são marcados *