Entrevista: Walter Antonio Bazzo e Luciano Andreatta Carvalho da Costa

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Durante o 28º Seminário Internacional de Educação Tecnológica – SIET, promovido pela Fundação Liberato em outubro de 2021, ocorreu a conferência “Educação profissional e os desafios do mundo contemporâneo”, com os professores Walter Antonio Bazzo e Luciano Andreatta Carvalho da Costa. Os conferencistas aceitaram o convite de continuar o diálogo sobre o tema nas páginas da Expressão Digital e concederam, pela plataforma Google Meet, uma entrevista exclusiva, que foi coordenada pelo professor José de Souza (JS) e acompanhada pela professora Daiana Campani, editora da revista, bem como pelo professor Luís Gonçalves, coordenador do evento.

Entrevistador:

José de Souza (JS)
É doutor em Engenharia pela UFRGS e professor do Curso Técnico de Mecânica da Fundação Liberato.

Entrevistados:

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Walter Antonio Bazzo (WAB)
É engenheiro mecânico e doutor em Educação na área de Ciências pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. Desenvolve seus estudos em Educação Tecnológica com ênfase no processo civilizatório contemporâneo e nas relações entre ciência, tecnologia e sociedade (CTS). É professor titular do Departamento de Engenharia Mecânica e do Programa de Pós-Graduação em Educação Científica e Tecnológica – PPGECT da UFSC. Publicou dez livros e mais de duzentos artigos científicos, além de alguns capítulos em livros. É um dos fundadores e o atual coordenador do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação Tecnológica – NEPET.

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Luciano Andreatta Carvalho da Costa (LACC)
É engenheiro civil e licenciado em Matemática pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, especialista em Edificações pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS, mestre e doutor em Engenharia Civil pela UFRGS. É professor adjunto da Universidade Estadual do Rio Grande do Sul – UERGS, sendo um dos fundadores e primeiro coordenador do Programa de Pós-Graduação em Formação Docente para Ciências, Tecnologias, Engenharias e Matemática – PPGSTEM. Foi eleito para o cargo de Reitor da UERGS para o período de 2022 a 2026. É professor de Matemática da Fundação Escola Técnica Liberato Salzano Vieira da Cunha.

JS: O Programa Brasil Profissionalizado foi instituído pelo Decreto nº. 6.302, de 12 de dezembro de 2007, com o objetivo de ampliar o ensino profissional de nível médio e de alcançar melhores resultados pedagógicos. Visando a estimular o Ensino Médio integrado à educação profissional, o referido decreto assinala para uma educação científica e humanística, por meio da articulação entre formação geral e educação profissional, considerando a realidade concreta no contexto dos arranjos produtivos e das vocações sociais, culturais e econômicas locais e regionais. Considerando esse cenário, podemos afirmar que avançamos desde a publicação do decreto?

WAB: Vivemos um cenário muito conturbado neste país. Precisamos refletir sobre várias questões. E, dentro dessas questões, é inadiável repensar o ensino e a educação como um todo. Criamos um modelo para o ensino profissionalizante que aborda questões humanas e tecnológicas. Onde? Apenas no papel. No entanto, apesar dessa preocupação burocrática dos documentos, não tenho dúvidas de que o caminho correto a ser seguido é esse, baseado no desenvolvimento tecnológico e humano. Mas como vamos conseguir realizar isso com a extensa burocracia existente e com um rumo de desenvolvimento equivocado que o país tomou? Se não pensarmos numa formação iminentemente voltada aos professores da educação tecnológica – nosso mote nessa conversa –, não adianta esperar que um milagre aconteça. Se não tivermos uma filosofia focada na definição do perfil que queremos como técnico, engenheiro ou qualquer profissional neste país, se não pensarmos nas três perguntas fundamentais, por quê, para que e para quem nós estamos pensando em formar nosso profissional, nada acontecerá.

Isso não vale só para as escolas profissionais ou de engenharia, vale para toda a educação neste país e, quem sabe, em todo o mundo. Se não tivermos uma educação voltada para uma ação humanizadora, que nos conduza a uma civilização onde a dignidade humana seja sempre nossa prioridade, não chegaremos a lugar nenhum. Todo mundo, nesse sistema movido pelo lucro e pelo consumo, é peremptório em dizer: “ temos que produzir”. Produzir, para quê, para quem, por quê? Volto a perguntar! O que queremos, por exemplo, com as escolas tecnológicas? Na qualidade de formadores, temos que repensar todo o processo educacional do mundo contemporâneo. A única forma possível de mudarmos o processo educacional atual nas escolas tecnológicas é trabalhar com os professores na busca da formulação mais contemporânea em torno do nosso objetivo. E o meu objetivo hoje, objetivo do educador Walter Antonio Bazzo, é a dignidade humana.

Temos que trabalhar com as variáveis contemporâneas, sejam elas quais forem, para que, no outro lado da igualdade, nessa metáfora que chamo de equação civilizatória, tenhamos a possibilidade de alcançar a dignidade humana para todos. Precisamos diminuir a fome, a desigualdade, e o que nós estamos fazendo é apenas um jogo de faz de conta com sistemas que não estão dando certo. Ou nós repensamos o todo como um processo civilizatório, ou nós, educadores, estamos sendo coniventes ao pensarmos que apenas o processo educacional formal dará conta do desenvolvimento humano. Precisamos trabalhar o planeta Terra como nosso volume de controle, onde todos estejam inseridos. Esse desenvolvimento tecnológico, econômico e, por extensão, social precisa ser para mim, para você e para aqueles que estão recolhendo ossos em caminhões de lixo. Nós precisamos fazer os estudantes refletirem constantemente sobre essas questões nas lidas diárias de suas tarefas escolares. O que pretendemos? Que futuro teremos em um país ou em um mundo que não tem mais empregos? Onde queremos chegar se as pessoas – refiro-me aqui àquelas que trabalham nas Universidades, nas Escolas Técnicas, etc. – continuam pensando, como se fôssemos uma redoma, em questões meramente burocráticas?

Eu não conheço a fórmula, mas sei que nós temos que voltar a refletir, a pensar sobre os problemas que se multiplicam em horas. Ou repensamos o que queremos com a educação, e aí está incluída a educação tecnológica, a educação de engenharia, ou nós vamos ter muitos problemas daqui para frente. Todo o mundo está preocupado com isso. Ao invés de só resolvermos problemas já postos, nossos estudantes precisam identificar os problemas que surgem no dia a dia. Nós temos que pensar em uma civilização que está mudando a todo instante e que apresenta problemas adicionais enormes. Então, entendamos, de maneira metafórica, a equação civilizatória, que, de um lado, apresenta variáveis contemporâneas e, do outro, a questão da dignidade humana.

LACC: O decreto nº. 6.302 tentou um resgate do que se perdeu no final da década de 90 com a divisão do Ensino Médio da educação profissional. Nós temos excelentes cursos de educação profissional em todo o Brasil. Essa formação técnica de nível médio foi dividida, no final da década de 90, e a formação técnica passou a ser ofertada separada do Ensino Médio. Eu me lembro que a Fundação Liberato resistiu. Isso aconteceu com outras escolas como o Parobé, que também resistiu. Então essa tendência do final da década de 90 praticamente acabou com toda a pujança que nós tínhamos na formação técnica no Brasil. Ainda sobre o decreto, em 2007, ele buscou recuperar, de alguma maneira, essa integração do Ensino Médio com a da educação profissional. Eu acredito que, em certa medida, o documento até teve algum sucesso. Principalmente junto aos Institutos Federais. Criou-se toda a rede dos Institutos Federais, antes denominados de CEFETs, e foram criados vários campi. Eu creio que houve algum avanço, mas atualmente vejo um declínio nessa tendência; podemos tomar o exemplo dos arranjos produtivos, das vocações sociais, culturais e econômicas. Vemos um país voltando a exportar o gado em pé, novamente dependendo basicamente de commodities, com pouco valor agregado na sua produção industrial, tanto na agrícola quanto na própria indústria. Então, isso afeta diretamente os empregos da área tecnológica. Se eu não tenho geração de valor agregado, se eu sigo exportando commodities, ocorre uma fragilidade na formação de empregos. Voltamos, infelizmente, a regredir nesse aspecto. Assim, a questão humanística, que deveria estar vinculada com a formação profissional, acompanhou o retrocesso.

JS: Uma formação mais humanística pressupõe garantias a jovens e adultos de uma formação completa, de um entendimento sobre o mundo e sobre a sua atuação como cidadãos, que estão integrados e que interagem dignamente com a sociedade. Esse modelo sugere, portanto, a compreensão das relações sociais e de outros fenômenos relacionados. Que ações as escolas e os cursos de educação profissional técnico de nível médio poderiam adotar para formar um profissional com múltiplos saberes?

LACC: Uma questão discutida no painel sobre o novo Projeto Político Pedagógico da Fundação Liberato foi a criatividade. Acredito que, em algum momento, precisaremos realizar uma intensa mudança na prática pedagógica, “uma virada de chave”. Um professor de Filosofia possui um período de 50 minutos para trabalhar seu conteúdo, entre outras disciplinas. Isso é impraticável. Não tem como fazer Filosofia dessa maneira. Professores perambulando de sala em sala, trocando de disciplinas e de turmas, intercalando com Matemática, depois Filosofia, depois Biologia, depois Português. Precisamos reinventar os nossos espaços, os calendários, a nossa organização. Para que possamos de fato fazer uma educação técnica profissional, precisamos considerar esses aspectos. Na formação integrada, não conta apenas o aspecto técnico. Para atingir múltiplos saberes, é preciso reformular um pouco esse jeito de fazer o ensino. Talvez salas organizadas por temas, por disciplinas, ou talvez os estudantes migrando para espaços identificados com determinadas áreas de conhecimento. Salas de aulas com todas as cadeiras alinhadas, com estudantes aguardando a exposição do professor, é algo que precisa ser mudado. Essa não é uma educação que estimula a criatividade; a educação não pode ser feita dessa maneira. Acredito na educação pela pesquisa. Cito como exemplo a Feicit, que é uma feira de iniciação científica, a Mostratec, as Olimpíadas, as atividades artísticas da Semana Cultural, a Gincana e tantas outras ações que a Fundação Liberato promove. Acredito que nós temos as ferramentas, e já acontecem essas ações. São momentos que promovem a integração, o conhecimento e o aprendizado.

WAB: Eu amo Filosofia, amo os professores de Filosofia, mas reconheço que é uma missão árdua desses sujeitos, quando entram numa sala cheia de estudantes com smartphones e onde ninguém está querendo saber sobre os assuntos de reflexão a serem abordados por esses abnegados professores. Por isso, a mudança precisa ser iniciada pelo corpo docente. Precisamos convocar os professores, de todas as áreas, e dizer: nós temos que entender o mundo à nossa volta. Nós precisamos entender como é que nós podemos chegar na resolução dos problemas e, ainda mais, na identificação de problemas. É isso que nós temos de mostrar para nossos estudantes, que sem essa reflexão não identificamos e, muito menos, resolvemos problemas humanos contemporâneos. Somos adestrados para solucionar um problema já posto, e, então, surge a máquina que faz melhor do que nós. É essa reflexão que nós temos que, urgentemente, resgatar nas escolas. Quando mostrarmos para os estudantes que a tecnologia e a ciência têm relação com o ser humano, com o propósito de vida que temos, eles vão reagir de outra forma.

Por isso a nossa dedicação continua com a formação de professores, não à formação burocrática, mas sim à formação plena, onde a leitura toma caráter fundamental, para mostrar para os professores que o que está acontecendo hoje no Brasil em termos de educação é muito mais importante do que uma ação simplesmente pedagógica. Precisamos mostrar que, quando eles, os estudantes, estão trabalhando com a técnica, pela técnica, isso vai influenciar no momento político do país, no momento econômico, na ética, no cuidado com o meio ambiente. Isso é interdisciplinaridade. Interdisciplinaridade não é ficar tão somente mesclando atividades de uma disciplina com outra. Isso não funciona. Temos que adotar essas questões como uma responsabilidade nossa na qualidade de professores, sejam professores de Física, de Matemática, de Termodinâmica, de Engenharia, etc. Não devemos separar o momento filosófico, sociológico, tecnológico e político durante a formação. Precisamos trazer de volta a reflexão e não a informação como fonte maravilhosa e indispensável de aprendizado.

JS: Considerando o artigo “A pertinência de abordagens CTS na educação tecnológica” (BAZZO, 2002), que destaca que a educação tecnológica atual está muito ligada a enfoques eminentemente técnicos, ignorando as influências recíprocas entre as trocas sociais e os desenvolvimentos científicos e tecnológicos, esse aspecto abordado no artigo ainda prevalece atualmente? Pode-se afirmar que isso ocorre devido a currículos que apresentam componentes curriculares essencialmente técnicos e pouco humanísticos?

WAB: Os conteúdos dos cursos tecnológicos são eminentemente técnicos, mas nós temos que entender que a formação humana é o fundamento principal de tudo no processo civilizatório. Nós estamos caindo hoje numa esparrela do fetiche da tecnologia. De que adianta toda essa tecnologia? Do que adianta toda a técnica se nós não tivermos uma fundamentação humana? Estamos mergulhando num processo absolutamente equivocado em seus princípios. Falamos da máquina para desmatar, mas não falamos que consequência poderemos ter com o uso sistemático e desenfreado de seu uso nesse desmatamento. O técnico e o engenheiro projetam e fabricam armas, e todos nós sabemos qual a finalidade de uma arma. Portanto isso precisa ser discutido no seu todo e o que significa no processo civilizatório contemporâneo. E não adianta propor algumas disciplinas em fundamentos sociológicos para sanar tal lacuna na formação de nossos estudantes. Isso precisa estar embutido na epistemologia do professor. Coloquemos como exemplo o professor José entrando na sala para dar aula de hidráulica. Ele tem que ter claro que essas questões todas aventadas anteriormente precisam ser discutidas em conjunto com os aparatos técnicos dos processos envolvidos. E uma delas, talvez a mais grave, é o aquecimento global. As escolas tecnológicas raramente se preocupam com essas questões, e elas não são discutidas com profundidade. E não pode ser numa disciplina isolada; precisa ser, indubitavelmente, na filosofia da formação dos estudantes.

As escolas são muito rígidas, com seus currículos herméticos da técnica pela técnica, e não permitem que seus estudantes reflitam sobre as coisas da vida e do mundo. Eles recebem muitas tarefas, sem a possibilidade de navegarem pelos reais problemas contemporâneos. E quem precisa construir esse tipo de ambiente somos nós, professores. A ação civilizatória trata sobre entendimento do mundo, para podermos trabalhar nesse mundo. Aliás, é um preceito da engenharia: eu só posso resolver um problema se eu entender qual é o problema a ser resolvido. Identificar é mais importante que solucionar, na maioria das vezes.

LACC: É necessário trabalhar esses temas de maneira integrada dentro das próprias disciplinas. Não precisamos criar uma disciplina nova para tal. Trabalhar problemas como questões financeiras, por exemplo, de juros, quando se ensina a equação exponencial é um exemplo dessa integração.

JS: Qual é o papel dos educadores para uma formação humanística? O que os docentes podem fazer no espaço de sala de aula e de laboratório para mudar a realidade fundamentada no modelo técnico conteudista ainda com currículos e ementas curriculares tradicionais?

LACC: A formação dos professores é uma questão fundamental. Precisamos trabalhar essas questões de reflexão de leituras contemporâneas e fazer essas relações que existem entre os problemas atuais e as diferentes disciplinas. Isso permite que os professores se capacitem e/ou se aperfeiçoem, além do que possibilita uma integração.

WAB: Estamos falando de formação dos professores; a instituição deve proporcionar um momento de formação, um seminário mensal para falar de livros, para falar de leitura. Precisamos entender quais são as coisas que estão acontecendo no mundo para que se possa trabalhar melhor com os estudantes. O professor tem que realizar leituras além da sua atuação eminentemente tecnicista e reduzida, exatamente para sair de sua bolha. Essa bolha é perigosa. Então não é uma formação absolutamente vinculada ao mestrado, ao doutorado, ao pós-doutorado que nos capacita a sermos bons professores. Não estou dizendo que isso não seja importante, mas tem que ser uma formação intrínseca do professor, que está preocupado realmente com o processo civilizatório em que nós vivemos. A engenharia não está apartada dessas coisas. Estamos vivenciando um processo civilizatório altamente equivocado, que não vem dando certo, e as pessoas insistem que está dando. Ou vocês acham que o processo civilizatório pode dar certo, onde, de repente, oito pessoas físicas do mundo contemporâneo possuem a riqueza de 50% do globo terrestre? E o que podemos fazer? Podemos trabalhar com os nossos estudantes sobre esses processos tecnológicos. Como engenheiro mecânico, preciso conhecer as normas sobre elementos, como porcas, parafusos e engrenagens, mas também preciso saber sobre a vida, eu preciso saber das questões humanísticas.

LACC: Temos na Fundação Liberato alguns estudos que nós fazemos transversalmente, e algumas soluções podem surgir a partir desse modelo. O desafio maior é o engajamento do pessoal, é encontrar maneiras de tornar essas atividades mais presentes. Uma das questões que pontuamos no painel é a carga horária dos cursos presenciais, que é muito elevada. Essa carga excessiva de atividades de aulas desestimula muitas dessas reflexões, dessas construções que precisam acontecer em outros tipos de atividade.

JS: Assim encerramos essa entrevista. Agradecemos aos pesquisadores pela participação.

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