Iniciação Científica e Política: o que isso tem a ver? Diálogos para o Bem Comum

Sandra de Oliveira entrevista Fábio Mendes sobre seu mais novo livro.

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Entrevistado:

Fabio Ribeiro Cantergiani Mendes (FM) possui graduação em Filosofia e em Direito, além de mestrado e doutorado em Filosofia (UFRGS). Realizou pós-doutorado em Informática na Educação (PGIE/UFRGS) e também desenvolve pesquisa de pós-doutorado em Psiquiatria (HCPA/UFRGS). Atualmente, é professor de Filosofia no IFSul/Câmpus Gravataí.

Entrevistadora:

Sandra de Oliveira (SO) possui graduação em Pedagogia, mestrado e doutorado em Educação (Unisinos). Realizou recentemente estágio de pós-doutorado Júnior CNPq (PDJ) na área da formação de professores. É coordenadora do Centro de Planejamento e Avaliação – CPA da Fundação Liberato.

A transformação que ocorre a partir da vivência da iniciação científica na escola em articulação com a participação em mostras de ciências como a Mostratec e a Mostratec Júnior não se encerra quando a feira termina. O que observamos é que a atitude investigativa e a postura problematizadora permanecem acompanhando as crianças e os jovens em suas experiências futuras. Os estudantes mostram-se engajados com a solução proposta, transformando não só o entorno, mas também seus modos de ser e agir. Nesse sentido, acreditamos que existe um trabalho ético e político que atravessa a experiência da prática de pesquisa na escola.

Sandra de Oliveira
Fundação Liberato

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SO: Fábio, você tem grande experiência na área da educação, tanto como pesquisador quanto como professor de Educação Básica. É grande incentivador da iniciação científica, sendo esse o tema de um de seus livros com maior alcance, “Iniciação científica para jovens pesquisadores” (Autonomia, 2013). Agora, seu mais recente livro aborda o tema “política”. O que você tem a nos dizer sobre a relação entre iniciação científica e política? Aproveite e nos conte um pouco sobre seu novo livro, “Guia para entender e debater política”.

FM: Ter conhecimento objetivo sobre realidade para agir em prol do bem comum: essa é a conexão entre ciência e política. A iniciação científica tem como objetivo alfabetizar os jovens em relação à produção de conhecimento, desenvolvendo senso crítico e protagonismo diante dos problemas concretos que a realidade nos impõe dia após dia. O fazer científico traz consigo, ainda, o entendimento de que o diálogo se constrói em torno de evidências comuns. Pois bem: é justamente a capacidade de dialogar ao invés de usar a violência que nos distingue dos animais (tal como dizia Aristóteles). Sem a ciência, a política se perde na imposições de opiniões umas sobre as outras, em uma guerra ideológica descolada dos fatos. O uso das palavras, ao invés da violência, requer aprender a dialogar e a resolver as divergências pela busca metódica de evidências comuns. Sem compreender a ciência, a política se reduz a uma mera disputa pelo poder. A iniciação científica, portanto, instrumentaliza os jovens a dialogar e a buscar conjuntamente o bem comum. Sem alfabetização científica, a reflexão política carece de base, e os atos políticos são cegos.

Foi tendo em mente a necessidade de traçar conexões como essa que elaborei o livro Guia para entender e debater política, com uma proposta também alfabetizadora. Assim como carecemos de formação sobre o que significa “metodologia”, “como interpretar dados”, “como delimitar um tema de pesquisa” no campo da ciência, também nos falta instrução sobre o que é “progressismo”, os tipos de liberalismo, de socialismo, a relação entre religião e Estado, dentre outros, e até mesmo o que é democracia. O livro foi escrito, depois reescrito; contou com leituras e contribuições de pessoas de diversos perfis e áreas de formação (incluindo cinco mestres e sete doutores). Após, o livro foi enxugado para caber em 100 páginas fluidas, com linguagem simples, voltada ao leitor que se interessa por política, mas nunca teve a oportunidade de estudar o tema. Por exemplo, se fala muito em “ser liberal”, mas o que isso significa realmente e que relação tem com as lutas antirracistas ou a liberdade de imprensa? É preciso ter o mínimo de clareza sobre essas noções para realmente ter uma conversa produtiva sobre política. Essa é a intenção do livro.

SO: As tecnologias de comunicação, incluindo as redes sociais, tornaram-se ferramentas fundamentais para a ideia de conhecimento em rede, mas ao mesmo tempo carregam o risco de desinformação, como as chamadas “fakes news”. Você aborda essa questão no seu livro. Qual o papel da educação em relação ao tema/problema da desinformação?

FM: As fake news e as estratégias de desinformação vieram para ficar. Em um mundo no qual qualquer pessoa pode publicar qualquer conteúdo (por mais fantasioso e mal-intencionado que seja), faz-se urgente ensinar os jovens a buscar fontes e a distinguir o que é conhecimento e o que é opinião. A Educação, portanto, tem um papel central em época de fake news; é determinante para que as pessoas possam entender o que é real e o que é ficção, para que não sejam manipuladas e percam a capacidade de fazer escolhas diante dos desafios que se multiplicam. A que direção deve se voltar a educação para dar conta da tarefa de combater fake news e desinformação? Ora, ela deve colocar como prioridade a alfabetização científica por meio de projetos de pesquisa desenvolvidos desde os primeiros anos da Educação Básica. Quais são os dados? Como formular perguntas sobre o que chega até nós? Como encontrar um modo de esclarecê-las por meio de evidências concretas? Essas são as questões básicas do fazer científico e são fundamentais para exercer nossa cidadania, por exemplo, pelo voto. E, aqui, vemos novamente a ligação íntima entre ciência e política: aprender ciência para poder refletir objetivamente sobre o bem comum.

SO: Acredita-se ser de consenso geral a máxima de que, na educação, não existe neutralidade. Educar por si só é um ato político. Sendo assim, como educar sem alienar? Como trabalhar educação política na Educação Básica sem cair na questão de partidarismo¹?

Essa pergunta é central. Confunde-se muito a reflexão política com a dinâmica política concreta, levando à ideia de que conversar ou educar sobre política carregaria sempre consigo um posicionamento político específico ou um alinhamento com este ou aquele partido ou ideologia.

Em primeiro lugar, é preciso entender por que motivo “educar é um ato político.” A resposta é que política se relaciona com a busca do bem comum, e qualquer projeto educacional só pode ser delineado com uma noção mínima sobre o que queremos para a sociedade. Sem uma concepção de bem comum – uma ideologia política – não é possível decidir o que fica dentro ou fora do currículo, como será a didática e a avaliação do aprendizado. Assim, ao definir que um determinado conteúdo será tratado com vistas a certos objetivos, tem-se sempre um pano de fundo: o bem comum, identificado com uma concepção política. A consequência é que a política e a educação estão sempre vinculados.

Entretanto, indo mais além, há uma questão mais difícil e, talvez, mais interessante: a política partidária deve entrar em sala de aula? Ou quem sabe a pergunta poderia ser outra: é possível que a política partidária não entre em sala de aula? Porque, de fato, dizer que a política partidária não pode entrar na escola é, por si mesmo, um posicionamento político, segundo o qual não se deve discutir na escola os problemas concretos para se alcançar o bem comum na sociedade. Não discutir projetos políticos na escola, note bem, é a escolha que o debate sobre políticas públicas, inclusive a educacional, não deve fazer parte da formação básica dos membros da sociedade.
Por um lado, então, parece danoso à educação o desejo de neutralidade, pois esse desejo é resultado de uma ideologia política que procura impedir ou limitar a formação de pessoas com capacidade crítica. Porém, por outro lado, prejudicial também seria o extremo: uma escola cujo dia a dia é tomado pela disputa entre partidos políticos, com professores e funcionários tentando conquistar os estudantes como apoiadores.

Como se resolve essa questão? Ora, isso se faz observando o pano de fundo, a concepção de bem comum que serve como contraste às decisões que tomamos considerando o coletivo. Se é importante formar protagonismo, senso crítico, autonomia dos estudantes, o pior cenário parece banir da escola qualquer referência a problemas políticos concretos. A “busca da neutralidade” leva à demonização da diferença, do debate, da reflexão e então, a meu ver, não é uma opção para formar indivíduos capazes de pensar a realidade. Para que a escola não se torne mero palanque de partidos, é preciso ensinar ciência, para que os debates sejam proveitosos, não pautados pela mera emoção e carisma: um debate político feito com base em dados objetivos e análises bem-feitas. A ciência pode ser o campo comum de diálogo e possibilitar a efetiva busca do bem comum, como já disse mais acima, mesmo que haja professores, funcionários e estudantes que abertamente defendem partidos políticos. Os professores que ensinam o contraditório com base em evidências ajudam nesse processo. A tão temida “doutrinação”, aliás, só poderia ocorrer em um ambiente que se diz neutro e não permite a crítica: a imposição dos conteúdos ditados sem base em evidências.

SO: Política é ciência. Segundo registros históricos, Aristóteles foi quem nos apresentou a ideia de que a política é a ciência maior. Como você vê a política contemplada nos currículos da Educação Básica brasileira e qual a importância disso em relação à constituição de sujeitos mais comprometidos com a equidade e com o bem comum para uma sociedade mais justa e igualitária?

A referência a Aristóteles é ótima: para ele, todos os seres da realidade, aí incluído o ser humano, movimentam-se na direção da realização plena de suas naturezas. Mesmo que apenas alguns indivíduos consigam chegar lá, é a tendência de as árvores darem frutos se tiverem solo fértil, água e sol e de o ser humano tornar-se capaz de conhecer a natureza (fazer ciência) e buscar o bem comum (fazer política) se tiver uma vida com conforto e educação adequada, o que inclui o entendimento do mundo em que vive e da arte. É nessa direção que já me posicionei dizendo ser necessário alfabetização científica e política para a formação humana.

Infelizmente, faltam, no currículo brasileiro, conteúdos básicos sobre política, as noções mais fundamentais para articular pensamentos sobre o coletivo. Isso se deve, provavelmente, à política autoritária e de recusa de direitos que constituiu historicamente nosso Brasil. Política é ainda considerado um assunto perigoso, porque, por muito tempo, efetivamente o foi. Se quisermos avançar na direção de uma sociedade plenamente democrática, mais justa e igualitária – ou seja, ao maior grau de desenvolvimento da humanidade – é preciso ensinar política desde as noções mais básicas, como os Direitos Humanos, por exemplo.

1. “Fanatismo partidário; facciosismo político”. PARTIDARISMO. In: HOUAISS, A.; VILLAR, M. S.  Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.

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