Crônica

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À queima-roupa, um dia me perguntaram: “Qual dos sentidos tu preferirias perder: ficar cega ou surda?”

Me pus a refletir que enxergar importa quando se joga o olhar adiante, no rumo para onde se quer seguir. É que o brilho nos olhos ajuda a iluminar o caminho.

Pensei que ver e enxergar são coisas diferentes. Enxergar alguém da nossa convivência é trabalho amoroso. Mas, no dia a dia, pessoas se economizam de pousar um olhar nas parcerias de vida, enquanto se falam ou se cruzam pelos cômodos da casa. Pressupõem que a introjeção que construíram do outro vale mais que o próprio.

É quando se esvai o respeito ao exercício do viver alheio. Ele não precisa mais existir fora do que é concebido. É quando o amor passa ao estágio de um interminável funeral, em que os cadáveres coabitantes se condenam à reunião diária à sala, na hora dos noticiários. 

Mas escutar é mais complexo. Não está investido de obviedades visíveis. Não se pode realizar leituras como a uma roupa que tem cor de rir ou chorar. Não é notório como encarna a decoração de um ambiente elegante ou casual.

O trabalho da escuta se faz ao decifrar signos. É da soma de letra em letra que se escuta alguém. É preciso juntar palavras a outras palavras e ainda assim deixar margem para o indômito nas falas.

É do som da tomada de ar, das quantas vezes que se repete, da intensidade dos suspiros que se sabe de onde vem o que está sendo dito. Escutar é, portanto, trazer o silêncio para compor conversa.

Escutar é respeitar o tempo do outro. O tempo de dizer, e o de deixar de fazê-lo. É mais que escutar palavras, é ler alma nos silêncios preenchidos do indizível.

Quem escuta é cúmplice da invisibilidade. Operar na palavra é apostar na singularidade das narrativas. É ser plateia de um desfile de palavras que somente aquela pessoa poderia eleger e encadear para pintar tal cena. 

Prefiro descansar meus olhos e fazer trabalharem meus ouvidos. Escutar alguém é ter o privilégio de passear pela trajetória do outro, enquanto ele tece caminhos de fala. 

Sim, provavelmente eu contrarie a maioria das pessoas por entender que está na escuta dedicada e atenta a melhor e mais profunda maneira de agradecer a gentileza de alguém em nos dizer. 

E, por fim, renovo minha primazia pela cegueira parafraseando o Pequeno Príncipe, já que o “essencial é invisível aos olhos”.

Carla Casagrande - Bibliotecária da Fundação Liberato

Carla Casagrande – Bibliotecária da Fundação Liberato

One Comment

on “Crônica
One Comment on “Crônica
  1. Muito bom o texto da Carla!
    Gostei muito da frase “Escutar é, portanto, trazer o silêncio para compor conversa.”
    Nada tão necessário nesses tempos onde a competição e o individualismo grassam, onde muito poucos se dispõem a escutar e a se coloar no lugar do outro.
    Parabéns!

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