Luiz Carlos Azambuja Silveira
Professor de artes
Fundação Liberato
A vida fala. Na maioria das vezes, de forma silenciosa. Eloquente, mas silenciosa. Com seus dilemas e obstáculos, através de suas oportunidades e decepções, alegrias e tristezas, com frequência ela está a nos informar a que veio. Ou melhor, o que nós viemos fazer nela. Passam os verões e os invernos, seguem os dias e as noites, e a voz muda da vida, de uma hora para outra, apresenta seu discurso. Às vezes de maneira clara, evidente como um soco no estômago ou um tapa na cara. Outras, e na maioria delas, com a sutileza que exige ouvidos de ouvir e cabeça de compreender. Nesses casos o que ela apresenta é um enigma a ser decifrado. Tarefa onde nem sempre somos bem-sucedidos. Ou seu êxito chega muito tempo depois, se tivermos a necessária motivação para o entendimento.
Aquela era uma noite como outras na escola. O semestre estava encerrando, e as atividades se restringiam a conclusões e recuperações. Era um curso profissionalizante, destinado a jovens adultos. A maioria deles, no início de sua terceira década de vida, quando basicamente dois são os dilemas: a vida amorosa e o trabalho. Tempo em que ocorre ou se encaminha o rompimento do cordão umbilical psicológico com a família de origem. Quase um segundo nascimento. Avizinha-se a saída da casa dos pais, para que eles possam construir a sua. Regra que apresenta suas exceções.
Uma lua crescente teimava em aparecer naquela noite de dezembro, apesar das nuvens e da chuva mansa. Os seguidos anos em sala de aula já me ofereciam a devida experiência e a necessária segurança para exercer meu ofício com certa tranquilidade. O improvável era improvável. Pelo menos era assim que eu pensava. As situações raramente ou quase nunca apresentavam novidades. Já havia visto aquele filme várias vezes e tinha na ponta da língua ou do gesto o que iria dizer ou fazer.
Poucos alunos vieram. A maioria deles já estava aprovada. Um ou outro aparecia para realizar as atividades finais de recuperação. Eu estava de pé, ao lado de minha mesa, conversando com um deles, quando Gabriela chegou. Aproximava-se de mim com a cabeça baixa e vinha acompanhada de uma colega que parecia ampará-la. Foi quando me fez a pergunta que eu jamais esqueceria:
– Professor, gostaria de saber se ainda posso entregar minhas tarefas. Não pude vir no dia que o senhor marcou, pois minha mãe foi assassinada.
Disse isso e se sentou, aos prantos, auxiliada pela companheira.
Não recordo das palavras. Mas respondi, com espanto, que certamente aceitaria. Queria dizer mais, e, sem dúvida, algo mais deveria ser dito. Não sabia exatamente o quê. Consegui apenas perguntar como aquela tragédia havia ocorrido.
Então Gabriela me falou, ainda em lágrimas, que não estava com a mãe, mas que testemunhas lhe contaram do assalto em plena tarde na rua movimentada. Que o ladrão lhe arrancou o celular das mãos e que, por conta de sua reação, recebeu três tiros no peito, caindo na calçada, que ficou borrada de sangue. Tinha quarenta e três anos. Além dela, deixou sua irmã adolescente. Ambas foram para a casa dos tios. Seu pai havia sumido há alguns anos e nunca mais dera notícias.
Que história! Não a ouvia do rádio, não a assistia pela televisão, não a lia no jornal. Era dita para mim assim, por alguém de carne e osso, vítima da narrativa, com seu sofrimento exposto, com sua alegria juvenil violada. E eu era o seu principal ouvinte, para quem, além do mais, era dirigido um pedido. Tinha eu o poder de aceitar ou recusar uma entrega fora do prazo de alguém cuja impotência diante dos fatos era brutal.
Não apenas o chão, mas também o teto e as paredes pareciam sumir, e eu me sentia suspenso no vácuo de uma situação que definitivamente não estava no roteiro. Não somente as palavras faltaram, mas o pensamento parecia ficar desnorteado, e os sentimentos não conseguiam ser acessados. Era como se o tempo tivesse parado, ou até mesmo andado para trás.
O que a vida estava tentando me dizer com aquele episódio terrível, narrado e descrito para mim daquele jeito e naquela circunstância? Passado tanto tempo, acho que o meu poder diante de uma aluna foi apresentado ao grande poder que regula a vida, para que eu me colocasse no meu devido lugar.
“A que será que se destina?” pergunta Caetano sobre o nosso existir. “O que a vida quer da gente é coragem”, afirma Guimarães Rosa. Certamente era de muita coragem que Gabriela precisava para prosseguir. Prosseguir com algo que não se sabe a que se destina. Nunca mais encontrei com ela. Mas guardo até hoje um contundente arrependimento de, naquele momento, não a ter abraçado. Não teria sido apenas uma tentativa de consolo a quem muito sofria. Teria abraçado e atenuado um pouco a minha própria angústia diante do que a vida quer.
Excelente relato. Uma tragédia descrita com poesia e afeto de um professor em estado de espanto.
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Muito bom Luiz Silveira. Uma tragédia contada com poesia. Grande abraço.
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