Fazia mais de um mês que Roberto não vinha à aula. Seus colegas não sabiam dizer o motivo. Era um adolescente tímido e silencioso, o que é bastante comum. Quase não se manifestava, mesmo quando eu ia conversar com ele. No grupo mais próximo de alunos, pouco interagia. Com o restante da turma, menos ainda.
Quando me perguntam como eu consigo dar aulas para adolescentes há tanto tempo, respondo: “gosto deles!”. Certamente, são desafiadores, especialmente quando expressam sua proverbial rebeldia. Por outro lado, eles sabem mais coisas do que eu, por estarem mais próximos da infância. Como disse Renato Russo, não sou mais tão criança a ponto de saber tudo.
Eu já tinha como certa a sua desistência, quando em determinado dia, ao fazer a chamada, vi que ele havia retornado. Após iniciar a aula e passar as atividades para a turma, fui ao seu encontro e perguntei o motivo de sua ausência prolongada.
— É que um amigo, que morava no meu prédio, se suicidou – disse ele, sem meias-palavras.
Quantos são aqueles que nos constituem? Somos indivíduos, mas cada um de nós é formado por muitos. Há em mim muito de meus pais e de meus irmãos. Vejo-me agindo ou falando como faziam ou fazem meus primos, meus amigos, meus colegas. Diversos outros há em cada um de nós. Somos múltiplos.
Quando nascemos, tudo gira ao nosso redor. Somos o centro do mundo. É no contato com a mãe, ou com quem a substitua – esse outro primordial do qual depende nossa sobrevivência -, que vamos olhando para fora de nós e, aos poucos, superando nosso narcisismo. É desse diálogo e, possivelmente, também desse conflito com o poder de um ser que nos alimenta, nos acaricia e nos protege, que nossa personalidade emerge. Nutrição e afeto estão tão vinculados que a ausência de um deles pode significar uma grave ameaça.
Sem disfarçar o espanto, pedi a Roberto que me desse detalhes.
— Não sei muito bem como foi, professor. Só soube no dia seguinte. Tinha ambulância e polícia lá no prédio.
— Vocês eram amigos há tempos?
— Desde crianças. Brincávamos juntos, jogávamos bola… Muitas vezes, dormíamos na casa um do outro. Ultimamente, a gente jogava bastante videogame.
Perguntei que relação teve isso com suas faltas. Roberto falou que não estava se sentindo muito bem. Indaguei se sua família ficou sabendo de tudo. Dando a entender que não gostaria de estender o assunto, ele me disse que não.
O outro é um enigma. E a decifrá-lo está vinculada minha existência. O outro é um diferente, um estrangeiro que, simultaneamente, atrai e atemoriza. E é ao tornar esse estranho um familiar, uma testemunha, que minha presença e meu valor se confirmam. Relaciono-me; logo, existo.
É nesse outro que há em mim, nesse forasteiro que me habita, nessa outra face da moeda que sou, fase e neutro, negativo e positivo, polos opostos da gangorra que me forma, quando me comparo com o outro e, sobretudo, comigo mesmo, e me percebo como o outro do outro que sou eu, que reconheço que sobrevivo por pertencer a um ecossistema de relações.
Devo o que sou e onde estou a muitos. Não seria o mesmo sem minha companheira e meus filhos. Devo a tios, a vizinhos, a professores e a outras pessoas que me estenderam a mão, quando eu muito precisava, e que moram, para sempre, em minha memória, em minha gratidão.
Fiquei preocupado com Roberto. Pus-me a pensar se ele também poderia fazer o que seu amigo fez. No dia seguinte, comuniquei o ocorrido ao setor da escola que, supunha, poderia ajudá-lo. Depois de um tempo significativo, me procuraram para que eu desse pormenores do caso, o que fiz prontamente, não sem demonstrar minha apreensão.
Empatia é a capacidade de colocar-se no lugar do outro, é a compreensão de outro indivíduo a partir da perspectiva dele, e não da minha, possibilitando-me, inclusive, sentir como ele. Alteridade também é se colocar no lugar do outro, mas aceitando que haverá situações em que nunca irei saber como a pessoa se sente de fato, por não ter as mesmas vivências e condições que ela. É o reconhecimento do outro como diferente de mim que está na base da compreensão e da aceitação da diversidade. Empatia e alteridade são constitutivas do humano que há em nós.
Não recebi, pessoal e individualmente, nenhum retorno do que fiz. Porém, meses depois, fiquei sabendo, de forma coletiva, em uma reunião na escola chamada conselho de classe, sem que minha atitude fosse citada, que a mãe de Roberto foi contatada. Disseram que ela nada sabia do trágico acontecimento em seu prédio, mas que o confirmou a seguir. Também não sabia que seu filho faltava às aulas. Relatou que era mãe solo, que passava o dia inteiro no trabalho, retornando para casa somente à noite. Que Roberto, quando não estava na escola, ficava sozinho em seu apartamento, ou ia para os avós que moravam no mesmo condomínio. Agradeceu à escola e disse que iria conversar com seu filho sobre o ocorrido e dar-lhe a devida atenção.
A conquista amorosa é o emblema mais significativo da relação entre mim e o outro. Ver-me espelhado no olhar afetivo do outro confirma meu valor, minha importância. Mas também, para que eu obtenha êxito nessa conquista, é preciso que minhas qualidades estejam desenvolvidas. Esta é a principal receita: Quer ser feliz no amor? Comece por aprimorar a si próprio. O eu se fortalece na relação com o outro. E mais admirável será o outro quanto melhor for o que houver em mim.
Soube que Roberto foi aprovado naquele ano letivo e que, mais tarde, concluiu o curso que fazia. Fiquei com a impressão, talvez pretensiosa, de que o que fiz foi importante para ele. Assim como tantos fizeram por mim.
Sem o outro, não haveria linguagem. Sem o outro, a ética e a moral seriam desnecessárias.
Conto a meus alunos que a Arte pode salvar vidas. Há um relato, na biografia de Raul Seixas, de que sua música “Tente outra vez” evitou um suicídio. Um empresário falido e com a vida pessoal em ruínas já estava com a arma apontada para a cabeça. Porém, para não alarmar os vizinhos, antes resolveu ligar o rádio no volume máximo. Ao ouvir nele “Tente outra vez”, mudou completamente de ideia. Depois que Raul morreu, esse homem procurou sua viúva para contar-lhe que essa canção impediu que desse fim à própria existência.
Em “Tente outra vez”, Raul anuncia: “Há uma voz que canta, há uma voz que dança, uma voz que gira, bailando no ar”. Não recebi nenhum agradecimento nem ouvi nenhum reconhecimento pelo que fiz por Roberto. Sinceramente, não vi disso necessidade. Para mim, basta e é muito maior supor ter sido apreciado pela voz que, como Raul, pressinto gira, bailando no ar.