Meu Capítulo na Liberato

 

Quando conheci a Liberato, eu tinha oito anos e morava com meus pais e meu irmão no Bairro Primavera, ou seja, próximo à escola. Isso foi há 42 anos. Da nossa casa, enxergava-se o prédio da Fundação, que acabara de ser semi-construído. Digo semi, porque, por muitos anos, o prédio teve uma parte inacabada. O bairro era totalmente diferente, a Rua Guató não passava de um caminho com poucas casas e alguns “sítios”. A rua Inconfidentes não era asfaltada e o acesso era difícil. A Liberato era a única edificação que existia. Na época, meu irmão estava concluindo o ensino fundamental. Ele não gostava muito de estudar e havia reprovado na oitava série, então, teve que trabalhar e estudar à noite. Meu pai olhou para o prédio, e talvez tenha pensado que, de alguma forma, poderia ser o melhor caminho para o futuro do meu irmão. Era uma manhã, e ele resolveu nos levar até a Liberato para ver o que era a instituição. No bairro e em Novo Hamburgo, não se tinha muita certeza de qual era a finalidade daquele local. Inclusive, alguns pensavam tratar-se de um manicômio, outros achavam que seria um presídio. Afinal, até mesmo hoje ao olharmos o formato do prédio, é possível relacioná-lo a este tipo de construção, fria e reta. Meu pai logo se identificou, pois como todo descendente germânico, também era frio e reto, presumiu que alguma coisa boa deveria estar acontecendo lá. Subimos o morro, por uma pequena trilha, passamos por uma porteira de arame farpado, pois era um campo onde eram criados bois e cavalos. Fomos recebidos por um senhor de cabelos curtos e brancos. Não consigo me lembrar exatamente de quem era, acredito tratar-se do Secretário Executivo da época, o professor Farina, que foi secretário por todo mandato do primeiro Diretor, o professor Razera. Cheguei a esta conclusão, pois, posteriormente, lembro de tê-lo visto na escola. Ele foi muito atencioso e educado e nos mostrou as salas e os laboratórios. Meu irmão não se empolgou muito, afinal tinha 15 anos e, nesta idade, tanto na época, como hoje, a maioria dos adolescentes não se empolga muito com os estudos. Mas, mesmo assim, acabou vindo estudar na Liberato. Em 1974, ele acabou escolhendo o Curso de Eletrotécnica que concluiu em 1976, pois a instituição oferecia ainda cursos de três anos em turno integral. Ele se formou e passou no concurso da CEEE, onde trabalhou até se aposentar.

Eu me lembro de ver o meu irmão fazendo os trabalhos de aula, projetos, desenhos, e isso me deixava ansioso para entrar nesta escola. Eu já havia me excitado com a visita, afinal com oito anos de idade, já estava começando a estudar, numa pequena escola municipal de bairro, com quase nenhum recurso. Fiquei impressionado com os laboratórios, pois nunca tinha visto nada igual. A tecnologia que eu conhecia resumia-se a uma TV em preto e branco e um fogão a gás. As opções a que eu teria acesso eram as escolas municipais e estaduais, mas nenhuma outra escola técnica, muito menos universidades. Terminei o ensino fundamental em 1975 e fiz a prova para Liberato em início de 1976, também para o curso de Eletrotécnica. Lembro que a prova de seleção foi realizada na antiga biblioteca da escola, espaço suficiente para caberem todos os candidatos. Ao final da prova, o Diretor, Prof. Razera entrou, nos parabenizou dizendo que nós já éramos alunos da Liberato, pois o número de candidatos era menor que o número de vagas disponíveis. Eram outros tempos aqueles.

Recordo que entrei na escola e me assustei com o tamanho do prédio e com o perfil dos professores, pois estes eram extremamente técnicos e exigentes. À medida que o tempo passava, mais eu me identificava com a escola, pois tínhamos acesso a muitas formas diferentes de aprendizado, aulas práticas, disciplinas técnicas, os passos de física, polígrafos, biblioteca e laboratórios. Além disso, pela primeira vez, conheci colegas de diferentes cidades, entrei numa vida social mais ativa, participando de gincana, baile da garota Liberato, festa de São João, feira de ciências (que, na época, ocorria nos laboratórios dos cursos e era de nível interno), indo muito além daquele meu mundinho de bairro. Fiz muitas amizades que perduram até hoje. Estudei, conclui o curso, fiz estágio e parti para o mundo do trabalho. Posso dizer que a escola me tocou, transformando-me em outra pessoa.

Alguns anos depois, vi uma oportunidade de voltar à Liberato, através de um concurso para auxiliar de ensino do Curso de Eletrotécnica, fui aprovado e retornei. Após concluir o curso de engenharia mecânica, fiz novo concurso, desta vez para Professor de mecânica, para o qual também obtive aprovação. Nesta nova fase na Liberato, passei a ser colega daqueles para os quais eu já tinha um respeito muito grande, quase uma idolatria. E, com o convívio passei a ter mais respeito, tamanha era a educação, ética e amizade que existiam no grupo. Eram pessoas muito cultas, que me faziam pensar antes de agir ou falar, sentia que precisava crescer mais como profissional e pessoa. Um destes momentos, que posso citar, foi o movimento para reivindicar melhores salários, o primeiro de que participei. Eu cresci na ditadura militar, portanto, considerava errado qualquer discordância ao sistema. Lembro-me das reuniões organizadas pelo Centro de Professores, resisti a participar, mas, quando fui à primeira reunião, fiquei impressionado com o conteúdo e argumentos expostos, e com a forma educada e respeitosa dos diálogos, mesmo nos momentos mais acalorados. Não vou nomear as manifestações para não ser injusto, mas posso dizer que tive mais uma aula de cidadania dos meus antigos professores, passando a admirá-los ainda mais.

Passados 42 anos, já fiz parte de vários grupos sociais e de trabalho, estudei em universidades, dentro e fora do país. Mas nenhum momento foi tão marcante, e nenhuma amizade foi tão sólida quanto todas que cultivei na Fundação Liberato. Já fui aluno, auxiliar de ensino, professor, Coordenador de curso, Diretor Administrativo, Diretor da DPPI e, por fim, atuo como Secretário Executivo. Em tudo que faço até hoje, tento me espelhar nestes professores e professoras e nas “aulas” que me deram. Procuro fazer igual àquele senhor que tão atenciosamente me recebeu no passado, quando a minha história na Liberato começou.

* Relato integrante do Projeto Trajetórias de Vida – GT Trajetos

Ramon Fernando Hans Professor da Fundação Liberato

Ramon Fernando Hans
Professor da Fundação Liberato

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