Narradores de Javé

Relato de experiência de estudos linguísticos a partir da obra cinematográfica: “Narradores de Javé”, de Eliane Caffé

Ao iniciarmos nossos estudos de língua portuguesa no primeiro ano do ensino médio, evitamos tratar da análise da língua partindo da normatização ou de regras ortográficas. O essencial, em nosso ponto de vista, é o entendimento do funcionamento desta. Para isso, refletir sobre a linguagem e sua presença em todas as ações do ser humano, a invenção da escrita e a evolução do conhecimento a partir dela, bem como a história da língua portuguesa, foram os temas que favoreceram a imersão dos alunos na disciplina. Neste sentido, exemplificamos a metodologia utilizada a partir do estudo da obra cinematográfica “Narradores de Javé”, de Eliane Caffé, analisada em uma perspectiva interdisciplinar.

Imagem_Narradores1De maneira geral, podemos citar os temas que embasaram as discussões, pesquisas e produções realizadas em aula sobre o filme: a diferença entre a narrativa histórica e literária; a odisseia do povo; diferentes versões do passado sem registro; comunidades ágrafas e letradas; memória como elemento essencial para a identidade individual ou coletiva; a necessidade da escrita para manter a sua terra; linguagem e poder; entre outros.

Para exemplificar a sistematização das atividades desenvolvidas, oferecemos uma amostra de produção realizada em turmas de primeiro ano do Curso Técnico de Eletrotécnica.

Maria Emília Lubian Professora de Língua Portuguesa e Literatura, Fundação Liberato

Maria Emília Lubian
Professora de Língua Portuguesa e Literatura, Fundação Liberato

 

Há fidelidade nas narrativas históricas baseadas na memória do povo?

Nos relatos da história, oral principalmente, comumente, ocorre das pessoas moldarem ou mudarem os fatos para favorecer seus interesses. Não raro ocorrem disputas em que as pessoas se fazem valer da história para adquirir vantagens atuais ou futuras.

Seja verdade ou mentira, engrandecendo parentescos ou de qualquer outra maneira, a história pode ser utilizada de diversas maneiras se não está registrada e comprovada. Cada um pode contar sua versão para determinado fato, se ele ainda não possui versão oficial. Essas mudanças ocorridas com frequência na história acontecem em comunidades não letradas com mais facilidade, pois sem um documento escrito não é fácil provar se a versão de certa pessoa foi modificada. Foi o que ocorreu no filme “Narradores de Javé”.

No filme, diferentes versões são contadas pelos moradores do Vale de Javé sobre a origem da sua cidade. Cada qual tenta engrandecer antecedentes que participaram da fundação de Javé. Há a tentativa de fazer um registro escrito, no caso, o livro que será sobre a origem de Javé e seus fundadores. A proposta do documento surgiu pela necessidade do povo em defender seus interesses, por intermédio da história, uma vez que acreditaram que o registro dos acontecimentos passados tornaria possível o tombamento histórico de Javé. Porém, os cidadãos de Javé não conseguem chegar a um acordo sobre a história de seu povoado, pois cada um conta uma versão diferente da história, versões essas que visam favorecer seus interesses pessoais, ressaltando os “parentescos”. O povo empobrecido e ignorante vê em enaltecer os antepassados uma forma de se considerar importante.

Por fim, sem chegar a um acordo, o livro não é escrito e a cidade é inundada. Por não serem letrados e pela falta de visão dos moradores, um final infeliz recai sobre Javé. Até mesmo porque, se a história fosse escrita, ela por si só não salvaria a cidade, já que o povo não tinha o registro oficial de suas terras e nem a possibilidade de lutar judicialmente por seus direitos.

Klaus Holler Turma 2111

Klaus Holler
Turma 2111

 

A interação entre Língua e Conhecimento

Conhecimento é, e sempre foi essencial para a ampliação das condições de sobrevivência. Hoje nada funciona sem conhecimento. Porém, nem mesmo o conhecimento é, digamos, “autossustentável”. Afinal, nem mesmo este sobrevive sem a língua. É ela que o mantém vivo: é ela quem o transmite de geração em geração, fazendo com que ele não caia no esquecimento ou que possa partir do ponto que um inventor, pesquisador ou cientista parou.

Por outro lado, deve-se lembrar de que isso é mútuo: a língua também não sobrevive sem o conhecimento. Afinal, para que a língua seja usada e compreendida, é necessário um conhecimento pelo menos básico dela, tanto por parte do emissor quanto do receptor.

Um ótimo exemplo disso é o filme brasileiro “Narradores de Javé”. O morador do povoado, Antônio Biá, um dos únicos da cidade que sabia ler e escrever, recebeu a tarefa de escrever um dossiê, um livro com a história da criação de Javé, que tornaria a vila um patrimônio histórico e impediria a cidade de ser transformada em uma represa.  Durante o filme, Biá demonstra ser a pessoa com maior conhecimento da cidade, mesmo sem ter uma formação escolar adequada.

A língua falada também foi o que manteve a história de Javé viva, permitindo a narração dela de geração em geração. No entanto, podemos relacionar as narrativas do povo com o ditado, “quem conta um conto aumenta um ponto”. Isto porque sempre que alguém passava a história adiante oralmente, mudava algo, criando várias versões dos fatos que não serviriam como fundamento de um texto científico. Por isso, já que não havia nada que comprovasse nenhum dos fatos, Biá não foi capaz de escrever o livro, e a esperança que o povo tinha de conseguir um tombamento histórico, se desfez.

Portanto, percebemos que o conhecimento e a língua andam juntos, ainda mais que tudo que é considerado científico ou tem valor histórico necessita de alguma documentação, além dos relatos orais. Enfim, assim como Biá que começou o registro a partir daquilo que poderia comprovar, com a chegada das águas da represa, da mesma maneira nós, ao afirmarmos algo, principalmente na escrita, necessitamos de provas daquilo que estamos registrando.

Octávio Brandão Turma 2124

Octávio Brandão
Turma 2124

 

 

Referências:

ALVES, Carolina Assunção. Narradores de Javé: uma análise semiolinguística do discurso fílmico. Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade Federal de Minas Gerais. 2006. 104 f. Belo Horizonte: UFMG, 2006. Disponível em: <http://www.bibliotecadigital.ufmg.br/dspace/bitstream/handle/1843/ALDR-6V4HJ5/disserta__o_carol.pdf?sequence=1>. Acesso em: 24 abr. 2013.

BASTOS, Adeilma Carneiro. Narradores de Javé e as possibilidades de leitura para o ensino de história. In: ENCONTRO ESTADUAL DE HISTÓRIA, 13., 2008, Guarabira, PB. História e historiografia: entre o nacional e o regional. Disponível em: <http://www.anpuhpb.org/anais_xiii_eeph/textos/ST%2005%20-%20Adeilma%20Carneiro%20Bastos%20TC.PDF>. Acesso em: 24 abr. 2013.

LIMA, Amauri de. Identidade, memória, oralidade e escrita em Narradores de Javé. Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade Estadual do Oeste do Paraná, 2009. 109 f. Cascavel: UNIOESTE, 2009. Disponível em: <http://www.educadores.diaadia.pr.gov.br/arquivos/File/2010/artigos_teses/2011/portugues/dissertacoes/Amaurilima.pdf>. Acesso em: 24 abr. 2013.

MATOS, Sonia Regina da Luz Matos. Letramentos do povo de Javé. Tela crítica: revista de sociologia e cinema. Ano 5, n. 5, dez. 2008. Disponível em: <http://www.telacritica.org/NarradoresDeJave.htm>. Acesso em: 24 abr. 2013.

SCARELI, Giovana. Imagi-nando multiplicidades entre-tempos/lugares: um olhar sobre o filme Narradores de Javé. Revista Rua, Campinas, v. 1, n. 17, jun. 2011, p. 21-34. Disponível em: <http://www.labeurb.unicamp.br/ruateste/pages/pdf/17-1/2-17-1.pdf>. Acesso em: 24 abr. 2013.

 

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Dados do flme Narradores de Javé
Narradores de Javé é um filme brasileiro de 2003, do gênero drama, dirigido por Eliane Caffé.
Data de lançamento: 27 de janeiro de 2003
Direção: Eliane Caffé
Edição: Daniel Rezende
Roteiro: Luis Alberto de Abreu, Eliane Caffé

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