Eu tinha um gato; esse gato, chamado Nacho. O nome eu escolhi porque ele apareceu um dia qualquer, aqui em casa, enquanto eu comia Doritos e daí eu dei um pra ele, e ele continuou ali do lado, mesmo que eu não tivesse dado mais nenhum. Não sei por que ele ficou. Tipo, era só um Doritos.
Mas ele ficou, e continuou ficando, e acabou ficando por um tempo. Mas, você sabe, ele é um gato, e tem toda aquela coisa de independência e de não dar a mínima pro dono, tratar ele como escravo. O Nacho era mais ou menos assim, sei lá. Ele saía da minha casa junto comigo, quando eu ia pra escola, mas ele não ficava me seguindo (lembra que isso não é uma história de cachorros). Ele só saía e pronto. Quando eu voltava, ele tava me esperando na frente da porta de casa, que também era o lugar onde ficava seu potinho de comida. Daí eu ia ali e colocava comida pra ele. Fiquei sabendo que quando eu ficava o dia inteiro na escola, ele nem voltava pra casa, só de noite.
Nessa época eu tinha uns dez anos, eu acho. De tarde, eu fazia minhas lições porque eu era um desses nerds. Depois, o Nacho vinha perto de mim e ficava ali, sentado. Ele era bem bonito, até. Tinha um pelo branco meio amarelado, os olhos eram azuis. Eu o pegava no colo e ficava fazendo carinho, tentando fazer ele dormir. Nunca dava certo.
E ficava ali no meu colo por uns minutos, bem quietinho, com aquele ar de superior, porém se rendendo ao ser acariciado. Depois de um tempo, ele pulava do meu colo e sumia por aí. Eu ficava sozinho fazendo minhas lições. De noite, na hora de comer, ele voltava.
Ninguém nunca fala sobre os gatos. Bom, não que nem dos cachorros. Me diz quantas histórias sobre cachorros você já viu, leu e chorou, que eu te digo quantas histórias de gatos pretos que eu já li que, no final, acabaram com o dono indo preso. Me diz quantas histórias sobre a cumplicidade do cão e do amor que ele demonstra ao dono você ouviu falar que eu te digo quantas histórias sobre a indiferença do gato e sua posição de autoridade eu ouvi. Eu nunca entendi.
Daí teve esse dia. Eu voltei pra casa ao meio-dia, e o Nacho não tava ali na porta. Eu estranhei de primeira, mas eu pensei “ele é só um gato”. Mesmo assim, eu sempre tive medo porque os gatos, eles são independentes até pra morrer, não morrem para os donos verem. Os gatos vão pra longe pra morrer como reis solitários, não fazem uma cerimônia por isso, eles são melhores que essa coisa toda. Ah, como eu queria que o Nacho não fosse assim, mas ele era. Nessa época eu tinha uns onze anos, e a minha decadência escolar veio quando comecei a passar tardes inteiras acariciando o Nacho em vez de fazer minhas lições.
Eu entrei em casa e perguntei pra minha mãe sobre meu gato. Ela me disse que não tinha visto ele o dia inteiro, mas era só meio-dia, então eu me acalmei. Mesmo assim, eu comi com nervosismo, procurando ele a toda hora. Naquele dia, depois de muito tempo, usei minha tarde pra fazer minhas lições. Anoiteceu e o Nacho não tinha aparecido. Ele não tinha surgido com nenhum bichinho morto de presente pra mim, coisa que tinha virado comum nos últimos meses.
Mais tarde eu tava lá no meu quarto, lendo um livro que eu não lembro o título, e o Nacho entrou calminho, não sei nem como ele entrou na minha casa. Ele parecia muito machucado, mas continuava com aquele ar meio imponente, sei lá. Nessa hora meu coração disparou. O rei tinha voltado pra se despedir do seu súdito.
Ele veio até mim, sangrando um pouco pela boca. Eu não sabia o que tinha acontecido. Ele respirava com dificuldade, mas conseguiu pular no meu colo, e deitou com uma calma que eu nunca tinha visto. Ele só deitou no meu colo. E eu sabia que ele não era um gato que ia pra longe pra morrer. Ele só ficou ali, deitado no meu colo, com a respiração fraquinha. Eu fazia carinho no pelo dele, meio manchado de vermelho, enquanto a sua respiração ficava mais fraquinha. Eu chorava em cima dele, bem baixinho, pra ninguém saber. Olhava pra ele enquanto ele fechava os olhinhos devagarinho e me dizia adeus em silêncio, com aquele ar superior de sempre. Depois de tudo, eu o chamei e pedi pra que ele não fosse embora, mas ele foi, porque ele era um gato, e gatos são independentes.
Não sei por que ninguém fala sobre os gatos, acho que é porque eles não são cachorros. O Nacho chegou assim de repente e foi embora da mesma forma. Eu não posso dizer que ele me seguia até a escola todos os dias, mas as minhas piores notas até hoje foram causadas por ele. Não posso dizer que ele me consolou quando eu estava triste, mas posso dizer que nunca me senti tão vazio e triste como me senti quando ele morreu nos meus braços. Ninguém vai fazer um filme sobre isso, ele não vai virar uma estátua na porta da minha casa, nada disso. Mas o Nacho, o gato sobre o qual eu falei, me fez sentir saudade, aquela palavra intraduzível e indescritível.
Primeiro Lugar Categoria Crônica Liberarte 2014
Murilo Martins da Silva
Aluno do Curso Técnico de Eletrônica
Fundação Liberato
Informo ao cronista que suas palavras me deixaram emocionada. Que crônica linda e especial. Hoje é dia 22/01/15 e meu gatinho fugiu há 13 dias. As palavras escritas aqui descrevem o carinho e apego que sentia por ele. Tenho medo que meu Tututi não volte.
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Adorei esta crônica!!! Realmente mereceu o primeiro lugar no Liberarte. Confesso que não segurei as lágrimas e lembrei do meu gatinho que sumiu para morrer… Obrigada pelo belo texto!
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