Impossível

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O vapor apitou e deu a partida. Zuniram os trilhos em faíscas e, lá dentro, as pessoas todas se acomodavam em seus leitos, num vaivém infindável que emprestava à locomotiva a alma alegre de quem vai com a certeza de voltar carregado de presentes, fotografias e histórias para contar. Alguns se dirigiam ao vagão social, onde se encontravam o bar e o restaurante com suas mesas cobertas com toalhas alvas, sobre as quais se dispunham, já muito à vontade, os cristais e as pratarias, refletindo as fantasias de todas aquelas gentes. Fantasias da inconsciência burguesa, acreditando que o mundo todo fosse assim: reluzente, borbulhante e alegre. Era assim o mundo todo por aqui e pelos arredores: crianças pulando de galho em galho, soltando pipa e tomando banho de chuva. Não esquecerei, jamais, os banhos de chuva, de rio, de lagoa e aqueles no açude da minha avó. O mundo, se bem recordo, era assim. E houve também o trem, como o dessas gentes todas aí de cima. Os leitos eram divididos entre os privativos e os para família. Em alguns vagões, viajava-se em assentos ou de madeira ou forrados em courvin escuro, já, naquele tempo, com pichações indecentes. Esses assentos, pouco confortáveis, eram dispostos frente a frente de forma que, por forças das circunstâncias, era necessário que se encarassem estranhos. Gentes desacostumadas à situação de serem forçadas a, sem saber para onde olhar, olhar para o chão ou para o céu ou para os lados ou para onde quer que fosse, somente, para não encarar um companheiro de viagem. Impossível. A luva de pelica caiu, no entanto, e o suposto cavalheiro, que já não sabia mais como deveria agir, num impulso, adiantou-se e, então, o trem parou, o mundo parou, a vida deu um tempo e o tempo, percebia-se pelas janelas, como que congelado, não mais passava. A hora era a de sempre, eternizada. A mulher em frente colou no banco e, com braços tesos, olhos estatelados e boca à la Münch, não parava de amassar o vestido com mãos, infantilmente, desesperadas – um despautério! – O senhor, perdoe-me, mas é que, por essas bandas, como se diz, todos são culpados até que se prove o contrário. O senhor poderá ficar calado ou chamar alguém para defendê-lo, um advogado ou, como quiser. Permita-me ajudá-lo. À luva, não dê importância. Calce-a, se servir é sua. Nunca reclame de quem é a culpa. Depois de o crime consumado, a vida continua e há trens para todos os lugares a preços módicos neste país. É preciso, contudo, que se mencione a expressão “neste país” neste país, sem a qual nenhum candidato se elegeria por essas bandas abandonadas. Os espaços estão todos tão vazios! O senhor, o que faz por aqui? Tão civilizado e, perdido? Veja, há corpos por todos os lados e, ainda assim, diz-se ser inevitável a queda do trem no precipício mais próximo, o da ponte que cai. Quanto vale a vida em seu país? Para onde mesmo é que o senhor está indo? Eu? Londres, Tum-Tum, Istambul, tudo igual. O que muda é o pensamento. Esse que, em cada cabeça, transforma-se em diferentes loucuras. O meu lugar, bem aqui à sua frente, é o não saber da minha mente em que pensamento encontra-se a minha loucura. Será que enlouqueci? O senhor compreende-me? Falamos a mesma língua? O meu lugar está vazio, repare. Já reparou como os espaços parecem todos tão vazios? Mas, e o senhor, de onde mesmo é que vem? Conhece bem a sua loucura, o seu pensamento? O que é que se come no lugar de onde o senhor vem? “Diga-me com quem andas e te direi quem és.” Veja, há corpos por todos os lados. O trem deve estar por cair. Quanto tempo de viagem ainda faltará até a próxima estação? – O cardápio, Senhora. – Ah, o senhor parece tão gentil e civilizado. Já cometeu algum crime? De onde mesmo é que o senhor vem? A luva, por favor, passe-me a luva. Um pedaço de vida passada em formato de mim. Creio que se acostumaram aos meus dedos, as minhas mãos. Recordo de quando, ainda criança, como ansiava por essas viagens de trem. Eram sempre no verão, às vezes, no inverno e íamos cantando: “café com pão bolacha não, café com pão bolacha não…” Os trens não caíam em pontes que caem naquela época. Normalmente, chegavam intactos aos seus destinos. Não havia tantos corpos assim e todos eram inocentes até que se provasse o contrário. Como o senhor pode ver, os tempos são outros. Uns acreditam ser muito melhor agora que a vida não vale nada, pois, afinal de contas, o trem vai mesmo cair e, então, eles dizem: – Viva-se! O instante exato em que tudo mudou foi quando, pela primeira vez, senti a necessidade incontestável de olhar para as minhas mãos e com elas tapar a boca para abafar o grito. Uma dor extrema no coração e uma borboleta colorida pela janela, colorida de Espanha. – Uma taça de vinho, Senhora? – Quanta gentileza, senhor! As minhas mãos nunca mais deixaram de ser, desesperadamente, infantis. Uma extremamente feminina; a outra eternamente tesa. Logo, o trem, ou parará ou cairá e nós, tão separados por esses bancos desconfortáveis, iremos juntos para onde quer que nos leve esta ‘loco-motiva’. Para todo o sempre. Uma viagem inenarrável, o senhor há de convir comigo. A paisagem vista daqui é indescritível. Já na primeira hora, um homicídio – ou terá sido suicídio? – e, corpos por todos os lados. A luva, veja!, está manchada. O grito escuto até hoje e, mesmo que tape os ouvidos, o coração ainda bate. A fuga, alguém uma vez confessou, é uma armadilha inútil do espírito para aprisionar os delitos nas entranhas das sensações, que já são tantas. O tempo todo num segundo. Os meus dedos, veja!, longos e finos como os da luva. Calce-a, se servir, já disse, é sua. Mas, jamais leve a mão à boca, nem grite, porque senão, o eco o acompanhará até o seu leito eterno e, o senhor bem sabe que o que se busca é a paz do silêncio. Na antessala do vagão notívago, um cravo a dedilhar um solo, fazendo os peitos arfarem de nostalgia e contentamento. Esse é o silêncio que mais aprecio. O do peito arfado, quando, ou pela janela ou pela música, transporto-me à natureza e às origens e ao princípio de tudo e para além ainda. A solidão pode ser um confortável refúgio àqueles que desejam se encontrar com o pensamento, a loucura, os sentimentos. O senhor bateu a luva três vezes em sua perna de fraque, estendendo-a à senhora no exato momento em que o trem, em alta velocidade, atravessava a ponte, a qual havia sido reconstruída.

Jorge Amaral

Jorge Luiz Gouveia Amaral Professor de Língua Inglesa Fundação Liberato

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