Um dia ouvi alguém comentar: como eu gostaria de saber mais sobre os meus antepassados. Atenta à colocação, também senti vontade de estar perto dos meus avós e, como num túnel do tempo, voltar a várias gerações anteriores para ouvir, questionar e viver a magia do simbólico, da bravura e do descobrimento da época. Certamente, embalaria muitos sonhos, cujas histórias seriam interpretadas diferentemente daquelas de quando criança. Tudo isso me motivou a remexer o meu baú.
Ao abrir o pequeno caixote, encontrei uma carta com cheiro de passado. Não era uma carta de amor, mas de impressão do primeiro olhar de quem chega a um lugar desconhecido. A um historiador ou a um familiar curioso, tal informação é tesouro na mão, pois é uma carta que se soma a muitas outras datadas nos anos de 1890-1891. Essas cartas foram escritas por imigrantes poloneses que se estabeleceram em Dom Feliciano (RS), mas, antes de chegarem ao seu destino na Polônia, foram apreendidas pelos russos. E ainda, dado cem anos da imigração polonesa no Paraná, tais cartas foram editadas nos Anais da Comunidade Polonesa, volume VIII, em 1977.
No tempo da imigração, no início dos anos noventa do século XIX, as regiões setentoriais polonesas foram tomadas pela febre da emigração. Os poloneses atravessavam, de forma ilegal, as fronteiras de anexação russa e prussiana, para seguirem ao Brasil e Estados Unidos. Contrários à emigração, as autoridades tzaristas queimaram muitas cartas que seriam enviadas a familiares na Polônia. No entanto algumas dessas cartas ficaram retidas nas chancelarias da polícia e, posteriormente, em arquivos oficiais: 177 cartas dos Estados Unidos, 60 do Brasil e 17 escritas de Bremen e Hamburgo momentos antes da saída dos navios.
Nove dessas cartas foram enviadas da região de Dom Feliciano, no sul do estado do RS. Ao mesmo tempo em que elas testemunhavam os primeiros dias dos imigrantes poloneses na nova terra, indicavam que Zyrardów (44km de Varsóvia) e Regimin, no município de Ciechanów (110km de Varsóvia), próximo à província de Kujawsko-Pomorski, foram as regiões mais afetadas pela febre da emigração. O conteúdo dramático de histórias de casais separados, confiança fraternal quebrada, pais que não viram seus filhos antes de morrer e a aculturação ao novo lugar revela não apenas uma realidade pessoal, mas o drama social da época.
Surpreendentemente, a mais antiga das cartas (23/12/1890) era do meu bisavô – Aleksander Kucinski, cujo original encontra-se no Arquivo Nacional da cidade de Varsóvia, sob a inscrição 46.
Endereçada à sua família na Polônia, a carta de meu bisavô foi traduzida para a língua portuguesa da seguinte forma:
Feliciano, dia 23 de dezembro de 1890.
Nas minhas primeiras palavras, louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo. Queridos pais, irmãos, irmã, cunhado, por graça de Deus estou com saúde e desejo-vos felicidade e saúde e tudo o que pedis a Deus, nosso Senhor. Agora, vou descrever-vos a minha viagem: estive em Opaleniec no dia 23 de agosto, de Szcytno chegamos a Berlim no dia 28 de agosto e de Berlim partimos para Bremen. Ali, ficamos durante 6 dias, no cantão governamental, onde ganhamos gratuitamente a manutenção que era da seguinte maneira: broa de trigo com manteiga e café, para o almoço, carne e, para a merenda, a mesma coisa. O jantar era igual ao café da manhã. O pernoite era excelente. A viagem prosseguiu para Bremerhaven. Essa cidade encontra-se às margens das águas, onde chegam os navios. Lá, embarcamos no dia 9 de outubro, daí viajamos durante uma semana de dia e de noite. Tivemos uma parada na Espanha, na cidade de Las Palmas. Lá, carregaram carvão um dia inteiro. Zarpamos de noite e viajamos, durante 14 dias e noites, e chegamos à cidade brasileira de Rio de Janeiro. Todos, lá, têm que ficar por 12 dias. Nós, porém, não ficamos por muito tempo, apenas três dias, e, novamente, embarcamos em navio e navegamos durante quatro dias e quatro noites. O navio levou-nos para um mar suave, encalhamos durante 10 dias e 10 noites e não tivemos socorro de nenhuma parte. Vários navios aproximavam-se e não puderam retirar o nosso. Passamos para um navio a vapor e viajamos durante um dia até a cidade de Porto Alegre, onde desembarcamos. Nessa cidade, permanecemos durante seis horas por águas até a ilha que está mais próxima de Feliciano. Nessa ilha, permanecemos durante meio mês e, dessa ilha, enviaram as famílias para a viagem às colônias, tendo que permanecer na viagem durante seis dias. A viagem é assim: levam as pessoas para as carroças de duas rodas e atrelam quatro parelhas de bois para cada carroça com rodas sem chapas de ferro. As montanhas são assustadoras, bem como as estradas. A viagem para essas colônias é muito complicada.
Agora, querido pai e família, vou descrever o país, chamado Brasil, como ele é. Primeiramente, vou dizer como são as matas. Não são como entre nós. Somente existem árvores como pinhos, loureiros, palmeiras brasileiras e outras diversas que só existem nos jardins da Polônia. As flores e folhagens de janelas (só existem em vasos na Polônia – tradutor), no Brasil, crescem no mato. A terra é produtiva, porque os cereais tais como: trigo, centeio e todos aqueles existentes na Polônia, encontram-se aqui. Quanto à produtividade, são muito maiores do que a Polônia, pois as espigas chegam a ter 7 polegadas. Há muito deserto e, em consequência, não existe muita terra arável.
Agora, vou descrever o clima: o calor brasileiro tem, como na Polônia, durante a colheita do trigo, o dia longo. Chegamos debaixo do sol, como se chega debaixo de uma viga de paiol, viajando em direção sul. Isso pode dar a imagem como ficava longe. Só nos causa tristeza que a terra é tão plana como na Polônia, mas montanhas grandes. Nos morros, as plantas crescem melhor que na Polônia em terra plana. Podeis saber que nesses outeiros, o capim é tão grande, quanto nos matos da Polônia.
Agora, quero descrever o tipo de gente que existe aqui. Há negros e brancos, como nós. Os credos são cristãos e vários outros. O serviço é assim: abrimos caminho para a cidade e construímos barracos para a gente. Ganhamos, por dia, quatro marcos, além da manutenção. Não somos dependentes como falavam na Polônia que seríamos escravos. Estamos com liberdade, mas quem quer comer tem que trabalhar e, quem não quer trabalhar, já está viajando de volta.
Não tenho nada mais a escrever, em tão breve espaço de tempo, mas, em outra carta, descreverei melhor. Ao receberem esta escrita, respondam imediatamente escrevam o que há de novo na Polônia.
Agora, inclino-me, querido pai, e, diante de vós, queridos irmãos, e, diante de ti, Estanislau, José, e Ludovico e diante do cunhado e irmã, juntamente com vossos filhos, termino a carta. Amém.
Aleksander Kucinski
Meu endereço é este: Brasil, Estado do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Município Encruzilhada, Colônia Francisco Gliséro Zelerx Io.
Longe da possibilidade contemporânea de descarte da carta do meu baú, ela se traduz numa preciosidade. Não apenas pelo registro, há séculos atrás, de fatos de um familiar, mas pela luta e superação diária com que foram entremeados contrastes, resiliência e anseios próprios de uma reconstrução. Olhar para trás, imaginar esse processo, é sentir-se pertencente às rupturas da época, cujos desdobramentos apontam processos identitários e nuances culturais presentes ao longo da trajetória de descendentes de imigrantes poloneses.
Elizabete Kuczynski Nunes
Professora de Língua Inglesa
Fundação Liberato