Memórias

O zumbido chegava aos ouvidos no entardecer do verão. Abafado e quente, o dia despedia-se em seu tom azul-acinzentado, com nuvens baixas e que ao longo, no horizonte, percebia-se rosa avermelhado. Do alto do monte de pedriscos dentro do pátio, em pé eu olhava, na frente de casa, as crianças correndo pela rua de chão batido cheia de morros de terra vermelha que seriam usados para fazer o calçamento de paralelepípedos.

Naquele entardecer, o som das cigarras aumentava com o cair da noite e a revoada de cupins tomava conta do espaço enquanto os pássaros os abocanhavam em seus voos. A criançada descalça da vizinhança corria por sobre os montes de terra, deslizando pelos cumes, pegando nas mãos e em potes os pequenos insetos voadores que se entranhavam nos cabelos… “Pega!”, “ali tem outro!”, “ai, tira isso do meu cabelo”, “eu tenho mais”, falas de um tempo que não volta.

Eu olhava a correria de dentro do pátio de casa, meu irmão, feliz e sujo do pó vermelho, corria junto com os amigos da redondeza, igualado nas maneiras de brincar de todos. A rua ali me olhava e eu a ela, dividida entre participar da brincadeira e o nojo dos pequenos bichinhos. Ficava e observava. A escuridão ia chegando de mansinho, os vagalumes piscavam seus sorrisos na escuridão que iniciava, os cheiros de terra e mato chegavam mais fortes, e eu sentia o mundo.

Esticava o corpo e via as pequenas casas da rua de baixo umas encostadas nas outras, juntas, unidas, na beira dos trilhos do trem, com suas portas e janelas abertas e, de repente, tênues luzes surgiam, amareladas, incertas, das velas que acendiam com o anoitecer. Meu olhar seguia porta a porta que se iluminava, os vultos que vislumbrava nesse momento tão cotidiano, mas que apertava, inexplicavelmente, meu peito.

E então ouvia minha mãe gritar da porta de casa: “Alexandreee!”. Era o sinal para que ele voltasse para casa, hora do banho, de fazer os temas escolares, de jantar, de conversarmos todos. Eu entrava junto, vendo meu irmão coberto de terra, desgrenhado, pés nus, pensando o quanto ele se divertia com os guris da rua… A noite ia caindo, ao longe já escutava o apito do trem que se aproximava e que logo estaria ali, tão perto de nós, na rua de baixo, logo atrás das casas que ficavam na beirada dos trilhos.

O pai chegava, cansado das lidas, da caminhada longa do trabalho até em casa, o dinheiro curto… “precisamos controlar”, e assim os quilômetros e quilômetros eram percorridos, sem reclamações ou tristezas, a vida era assim. Era a hora do chimarrão, de contar o que tinha acontecido, para onde o pai havia entregue o óleo diesel, de como tinha sido o almoço na casa da bisa, lugar de encontro de netos e agregados ao meio-dia, espaço de acolhimento e apoio; de como tinha sido o trabalho de casa da mãe, das brigas das crianças, das economias e aumentos de preços no mercado… Sentados os dois, fora de casa, cadeira puxada e um de cada lado da porta… Eu e meu irmão também nos sentávamos ali, eu na minha cadeirinha, próxima de minha mãe, meu irmão, ainda sujo, na calçada, escorado na parede da casa. O chimarrão passava tranquilamente de um para outro, as crianças não tomavam, não tinham esses costumes, mas ouviam com atenção, interrogados sobre os acontecimentos do dia, do conhecimento aprendido na escola, das notas e comportamentos.

E a prosa seguia por novos caminhos, mas tão esperados que já eram antigos, a filosofia de um homem e uma mulher que sempre desejaram o melhor para seus filhos: a capacidade de pensar, mesmo que eles também não soubessem as respostas que incitavam a buscar : “quem nasceu primeiro: o ovo ou a galinha?”, “como surgiu o mundo?”, “se foi Deus o primeiro, quem fez Deus?”… e as perguntas sucediam para pensar, rir, analisar, mas principalmente para conversar, troca de afeto entre aqueles que não tinham o hábito de abraçar sem razão. Outros tempos de uma outra criação. Mas eram esses os momentos mais aguardados. A História de um povo lutador e orgulhoso, recontada junto com o ronco do chimarrão e dos causos de família que eram passados para lembrar, sempre, de quem já havia partido. Mas o silêncio também se aconchegava, tão doce e melancolicamente que não provocava dor ou tristeza, ele estava lá, e nesses momentos, olhava para cima e via as estrelas, um mar de pequenas luzes, tão fortes e marcantes, as três marias, o cruzeiro do sul… O céu era o pátio dos sonhos sonhados e trocados de um amanhã melhor.
E a escuridão mais se acentuava, e então chegava a hora, “crianças, vamos entrar!”. E entrávamos não para a simples casa, mas para o lar que era e depois, juntos na escuridão da noite, cada um deseja com a voz enrouquecida pelo sono “Mãe, Pai, Mano! Mana! Boa-noite! Dorme com Deus e sonha com os anjos”.

E assim era.

Giele Rocha Dorneles
Professora de Língua Portuguesa e Literatura
Fundação Liberato

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