“Somos a continuação de um fio que nasceu há muito tempo atrás…
Vindo de outros lugares… Iniciado por outras pessoas…
Completado, remendado, costurado…
Continuado por nós.”
DANIEL MUNDURUKU
Ao contrário do que muitos pensam, o trabalho de uma bibliotecária não é com livros e, sim, com a leitura. Atrevo-me mais ainda e ouso dizer que nosso efetivo trabalho não é com esses objetos ou essa ação, mas sim com pessoas. Seres e suas almas: cérebros que absorvem informações; corações que processam conhecimento e aplacam mazelas. Transformação!
Nosso trabalho é uma reação química: físico e emoção implicados na transformação do mundo. Em regra, nem sei dizer se na transformação do grande mundo… Comecemos pelos pequenos-grandes mundos que são as pessoas. Aqui em nossa Biblioteca, não esperamos que o livro faça o seu trabalho. Começamos antes pelo sorriso. Quem não gosta de ser bem recebido? Quem não gosta de escutar o seu nome sendo dito por alguém, quando poderia ser considerado apenas mais um?
Isso me fez lembrar de um certo leitor privado da visão, associado em uma Biblioteca, em que trabalhei anteriormente. Ele se surpreendeu quando eu lhe disse que, ao ter visto determinado livro recém-chegado ao acervo, nos lembramos das preferências de leitura de sua esposa. Retrucou ele, quase incrédulo: “Lembrou de nós? Mas, nós não somos ninguém!” E me saltou à mente o seguinte pensamento: aquele livro dormindo na estante é que é ninguém. Até que alguém o desperte. O leitor desperta o livro e nós somos setas que apontamos livros e pessoas.
Ser este vetor entre leituras e leitores enche de sentido o meu fazer de Bibliotecária. Todas as manhãs, quando abro a Biblioteca, faço questão de segurar a porta aberta, esperando que os estudantes entrem e cumprimentar-lhes sorrindo e olhando nos olhos de cada um deles. É uma prática que me faz lembrar que, a cada novo dia, as múltiplas possibilidades de transformação na vida das pessoas nos coloca em um lugar de responsabilidade.
Então, recordo-me de uma outra experiência. Havia, em um canto qualquer do mundo, um menino de oito anos de idade que deixou de sair de casa por quase um ano, em razão de um trauma sofrido. Seu avô, desesperado com a reclusão a que o garoto se submetera, debruçou-se no balcão de atendimento e, em incontrolável desabafo, me contou o ocorrido, com voz embargada e lágrimas teimosas em seus olhos.
Tudo começou em certa manhã, quando esse menino de uma cidade vizinha saiu em compras com sua avó no Mercado Público de Porto Alegre. A avó passou mal e caiu no chão, subitamente desfalecida. Sem sua protetora adulta, o menino se viu cercado por uma multidão. Porém nunca estivera tão sozinho! Como pérola, recolheu-se em seu estojo e deixou, inclusive, de frequentar a escola regular.
Comumente, a saúde física costuma ser alvo de atenção. Entorses, feridas, fraturas, dores expostas… Todas essas formas explícitas de dano recebem, de alguma maneira, algum cuidado, alguma intenção de cura. Mas e a dor silenciosa, quem olha para ela? Então, ao escutar o apelo velado daquele avô incontido, ao conhecer o sofrimento daquele menino, logo percebi que deveria tentar ajudar. Senti medo de não dar certo: medo por mim e medo por ele. Mas vi a chance de ler um ser e ajudá-lo a (re)construir significados. Não podia me omitir: conversei com o avô e pedi autorização para iniciar um processo de leitura indicada para o menino.
Porém, como já há oito meses, a criança não aceitava sair de casa, em razão do trauma, eu agia à distância, com pouquíssima informação e havia o risco de ruídos, pois o avô seria o intermediário entre nós, ainda que eu soubesse que o conteúdo percebido e trazido por ele teria o seu filtro pessoal, cabedal de suas vivências.
Portanto, estava quase às cegas, e essa era uma empreitada que exigia paciência, coragem, esperança. Sentia e pensava muito, lia, estudava. Mas era preciso confiar no processo e foi o que eu fiz. Combinei que ele levaria o livro para o neto e me traria toda e qualquer informação possível.
Quem ou o que me garantia que havia realidade naquele tênue fio, naquela troca, nos ligando? Não era possível ser assertiva numa resposta. A única saída agora era ligar os radares da atenção no máximo e seguir aquele percurso. Em cada um dos livros a serem escolhidos haveria uma intencionalidade. Desse modo, os desafios somavam-se em perceber as mensagens que o menino emitiria, como absorveu a leitura anterior e qual seu desejo ou possibilidade de enfrentamento subsequente.
Comecei o trabalho com a seleção de um primeiro livro e, com base em uma atenta escuta do conteúdo trazido por seu avô, indicava uma outra leitura. Para definir a próxima obra, eu considerava o resultado da leitura anterior e os desejos do menino e traduzia isso em uma nova escolha literária. Dessa maneira, ia indicando leituras que interessavam ao processo de superação da criança.
Assim, por meio da literatura, o menino foi ao Armazém do Folclore (Ricardo Azevedo), encarou sua Mula-Sem-Cabeça (Toni Brandão), desatou seus Nós (Eva Furnary), se fortaleceu através da Vingança de Ishtar (Ludmila Zeman) e, por fim, ficou livre e leve com Histórias para Voar (Anna Flora).
Essa criança, antes desamparada em sua dor, foi sendo resgatada de seu isolamento. A cada semana, seu avô me trazia um novo, surpreendente e maravilhoso relato: que ele já estava jogando futebol no campinho com os amigos, que foi dormir na casa de um coleguinha, que iria ao barbeiro, após quase um ano sem cortar o cabelo, colocando fim a uma “juba de leão”. E que, por fim, estava voltando para a sala de aula.
Afora a sequência dos títulos, que parecem contar por si próprios como se deu o percurso interno do garoto, um dos livros que mais me chamou a atenção foi o Nós. Eu ainda não o conhecia, mas ao lê-lo com o foco neste trabalho com o menino, o conteúdo se revelou uma pequena obra-prima.
Dotado de belíssimas ilustrações, Nós narra a história de uma menina, personagem principal, que não por acaso, se chamava Mel e vivia rodeada de borboletas. Também, não sem motivo, morava em uma cidade chamada Pamonhas. Muito magoada com a zombaria de suas colegas, por conta das borboletas que a acompanhavam, Mel evita o choro e começam a aparecer nós por todo o seu corpo. Então, a menina desenvolve o nó mais dolorido: um nó na sua garganta.
Isolando-se, para se defender do sofrimento, Mel parte em exílio disfarçada de, nada menos que uma geladeira. Em sua nova cidade, significativamente chamada Merengue, conhece Kiko, um garoto que também possui nós e já sabia como desatá-los. Ele ensinou para Mel como lidar com seus nós e ela, grata, dividiu com ele suas borboletas.
Uma das reflexões possíveis é que, no envolvimento com Kiko, Mel muda seu estado de eu, e passa a viver o nós. O que vemos nesta história é que o nós do amor, desfez os nós da dor. E aqui vem uma questão que considero muito importante: para que serve a vida se não for para sermos felizes e ajudar outras pessoas a serem também? De que nós queremos fazer a nossa vida? De um nó que engasga, que sufoca, que estagna/estanca? Ou queremos uma vida de um nós que é coletivo, que enlaça, que assegura, que tece teias?
Esses dois casos são evidências de que a dinâmica da vida acontece nos pequenos gestos, nos minúsculos enfrentamentos letra a letra, palavra a palavra, pessoa a pessoa. Elas se libertam das amarras da insignificância ou do medo, pois descobrem que são alguém, que importam e que nos importamos com elas. Ah, esses maravilhosos leitores! Esses especiais escritores de suas próprias vidas…
Somos agentes de transformação, todos: leitores e ofertadores de livros. Incidimos sobre pequenos mundos que movem o mundo maior. Este no qual respiramos, vivemos, agimos. Este que foi pisado pelos nossos avós, que é usufruído por nós e que será herdado por nossos filhos. Aqui e agora podemos fazer a diferença e, então, o amanhã virá. Com um pouco de cada um de nós, no muito que cada ser é nesta Terra.