Artigo – K. e D. – 1ª Parte: o início do fim?

Em 17 de abril de 2016, no Brasil, Deputados Federais (DF) autorizaram o início do impeachment da Presidente Dilma Rousseff (D.)[1]. Encerrado o ‘julgamento’ senti-me ‘constrangida’. Igreja Católica (inquisição)! Shakespeare (Hamlet)! Kafka (O Processo)! O objeto do impeachment se resume em supostos descumprimentos de legislações (orçamentária/responsabilidade fiscal). Estranho, porque ao invés de se concentrar nele, tudo o que vi é que a maioria dos DF ‘esqueceu’ esse objeto e votaram pela sua família/colegas/Deus[2]. Concentremo-nos em Kafka[3] (o espaço é curto!).

Na obra “O Processo”, logo o leitor se surpreende, eis que o personagem bancário Joseph K. (K.), ao se preparar para o seu desjejum na pensão onde estava hospedado, encontrou dois homens (‘oficiais de justiça’/’policiais’?) que, de imediato avisaram: “Não pode sair, está preso!”. K. indagou por quê, e a resposta é mais surpreendente: “Não estamos autorizados a dizer-lhe (…). Abriu-se um inquérito contra o senhor, que será informado de tudo no devido tempo.” A partir daí, K. passou por um verdadeiro calvário: nunca ‘viu’ o mencionado processo judicial e foi condenado à pena de morte. Paradoxo!

Onde estava o juiz que ele nunca vira? Onde estava o Supremo Tribunal aonde nunca chegara? (…) Mas um dos dois senhores acabava de agarrá-lo pela garganta; o outro enterrou-lhe a faca no coração e a revolveu duas vezes. Com os olhos mortiços, K. ainda viu os dois senhores (…) observando o desenlace, rosto contra o rosto. Como um cão! […].

K. não era um cidadão: era um ‘nada’! A análise comparativa entre a obra “O Processo”, e o procedimento de impeachment, do dia 17, se impõe já que há algumas semelhanças entre eles. Vejamos!!! Resumidamente, é crível que: tanto K. quanto D. foram vítimas de mentiras. Ambos (K. e D.) não têm certeza de quem são os seus amigos/inimigos. K., em dado momento da sua tragédia, ficou preocupado, porque as fofocas sobre o seu ‘caso judicial’ estavam se espalhando na sociedade e, D., idem!!! K., embora intimidado por ‘oficiais de justiça’, nunca recebeu a “citação”; já D. foi “citada” e apresentou a sua versão no Poder Legislativo (Político). K. jamais foi “intimado” para acompanhar os demais atos do processo (acusação), mas D., não obstante soubesse das ‘duas acusações’ que lhe aferiram, já foi considerada, antecipadamente, como se ‘culpada’ fosse, ainda que, no dia 17, a votação dos DF tenha se resumido à admissibilidade, ou não, do início do impeachment. K. nunca foi, efetivamente, defendido, pois o seu ‘advogado’ não se comportou como um “advogado”; já D., felizmente, tem um ilibado, experiente e intelectual defensor jurídico. K. nem conheceu ‘de verdade’ quem o julgou, e D., embora conhecesse os DF, só ficou sabendo ‘de verdade’ quem/quantos eram os seus algozes, no dia 17. K. não pôde apresentar provas que lhe favorecessem e restou condenado por algo que nunca soube; já D., embora tenha sido ‘condenada’ por antecipação pela maioria dos DF e, ainda, seja julgada em outros espaços, as acusações a ela imputadas não são unânimes. Encerrando (o espaço é curto!), e porque o jurista Comparato[4] é um dos meus super-heróis que, ao citar o “Sermão de Antônio Pregando os Peixes”, ilustra o que aqui foi abordado:

Vede um homem desses que andam perseguidos de pleitos, ou acusados de crimes, e olhai quantos o estão comendo. Come-o o Meirinho, come-o o Carcereiro, come-o o Escrivão, come-o o Solicitador, come-o o Advogado, come-o o Inquiridor, come-o a Testemunha, come-o o Julgador, e ainda não está sentenciado e já está comido. São piores os homens que os corvos. O triste que foi à forca, não o comem os corvos senão depois de executado e morto; e o que anda em juízo, ainda não está executado nem sentenciado, e já está comido. (COMPARATO, 2015).

Exercer a cidadania e permitir-se conhecer/pesquisar o que está ocorrendo no Brasil é uma das nossas obrigações em relação às futuras gerações. E, perdoai aqueles que não investigam/pesquisam com o rigor ético que se faz necessário neste momento, independente de ‘quem’ vencerá “o nosso processo”. O que se impõe é a verdade e, conforme Edgar Morin, sejamos fraternos com todos, especialmente com aquele que discorda de outro brasileiro ou estrangeiro.

[1] “A crise política atual mostra também o quanto é frágil uma democracia sem uma imprensa forte e responsável, consciente do seu papel histórico de documentar a sua época com honestidade.”. LOPES, Rodrigo. Com a palavra Eliane Brum. Zero Hora – Caderno PrOA,, Porto Alegre/RS, 26-27 mar. 2016, p. 23-25.

[2] (…) cada vez o individualismo aparece mais, estamos vivendo numa sociedade individualista, que favorece o sentido de responsabilidade individual, que desenvolve o egocentrismo, o egoísmo que (…) alimenta a auto-justificação e a rejeição ao próximo.” MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do futuro. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/EdgarMorin.pdf>. Acesso em: 30 abr. 2016.

[3] KAFKA, Franz. O processo. Tradução de Manoel Paulo Ferreira. New York City/USA: Círculo do Livro, s/d. p. 7 e 230.

[4] COMPARATO, Fábio Konder. O poder judiciário no Brasil. Cadernos IHU ideias, São Leopoldo/RS, v.13, n. 222, p. 9, 2015.

Marita Konzen Professora  Fundação Liberato

Marita Konzen
Professora
Fundação Liberato

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