O Seminário Internacional de Educação Tecnológica – SIET, integra a Mostra Internacional de Ciência e Tecnologia – MOSTRATEC, uma das mais antigas e consolidadas feiras de trabalhos de jovens cientistas. Nesse ambiente profícuo, o SIET se consolida como fórum privilegiado para a formação continuada em pesquisa e qualificação do seu uso como ferramenta pedagógica e de transformação de realidades.
Conforme a origem latina da palavra Seminário, sémen, “semente”, trata-se de uma sementeira. Um espaço para desenvolver e germinar conhecimentos e aprendizagens. Criado em 1994, o SIET tem como público-alvo os educadores, pesquisadores e gestores educacionais dos países visitantes e do Brasil. Ao longo de sua história, contou com uma diversidade de temáticas, de participantes, de formatos e de colaboradores.
A temática norteadora do 23º SIET foi “Educação, Tecnologia e Sociedade”, um trinômio que permite a abordagem das questões relacionadas ao campo da educação científica e tecnológica em um complexo momento civilizatório. Destacamos, para publicação na Expressão Digital, a entrevista com dois conferencistas, que abordaram temas transversais de extrema relevância para o contexto educacional: “Ética e Tecnologia na Educação Contemporânea”, pelo Prof. Dr. André Luiz Olivier da Silva, Coordenador do Curso de Direito da UNISINOS e “Gênero, Escola e as Escolhas Profissionais”, pela Profa. Dra. Natália Pietra Méndez, do Departamento de História da UFRGS.
André Luiz Olivier da Silva
A sociedade contemporânea é caracterizada pelo crescente poder da tecnologia, que configura cada vez mais nosso modo de viver, pensar e sentir. O que você pensa a respeito da necessidade de uma nova ética que reconheça as contribuições inegáveis das tecnologias, mas que tenha a humanidade como centralidade?
Além de ser caracterizada pela tecnologia, a sociedade contemporânea é também marcada pela diversidade cultural e pelo pluralismo de opiniões, crenças e conhecimentos, de tal modo que é impossível falar em uma só ética. O que se pode dizer é que sempre temos alguma opinião ou crença sobre o bem e o mal, o justo e o injusto, embora, na maior parte das vezes, os humanos nem sempre concordem sobre o real sentido daquilo que compreendem como bem e mal. Diante desse contexto, só nos resta compreender nossas diferenças enquanto seres humanos e rejeitar a imposição da “minha” ética sobre a ética dos outros. No caso das novas tecnologias, o desafio reside em aprofundar a investigação científica, sem desconsiderar o impacto moral e político que essas investigações podem ter sobre a vida, em especial sobre a vida humana. Nesse caso, podemos discutir até que ponto a humanidade teria centralidade nos novos desafios apresentados pelas novas tecnologias. Será que a centralidade no humano já não constitui um paradigma esgotado? Veja os desafios trazidos por novas tecnologias em relação ao meio ambiente, os animais, dentre tantas outras questões que desafiam o paradigma da humanidade. Se pegarmos a modernidade, veremos que a humanidade está no centro da discussão ética. Kant é o mais célebre filósofo moral a abordar esse ponto, quando propõe, a partir do imperativo categórico, tomar o ser humano nunca como meio, mas sempre como um fim em si mesmo, dotado de valor universal em razão de sua humanidade. Se observarmos com atenção, o impacto das novas tecnologias pode ser brutal e destruidor não apenas com o humano, mas com o meio ambiente, o que, em minha opinião, já nos obriga a repensar o próprio paradigma da humanidade para fundamentar uma teoria ética.
Como ensinar nossos estudantes a exercerem uma postura investigativa e crítica diante das sociedades científico-tecnológicas?
Uma postura investigativa depende da compreensão de como as coisas funcionam no mundo e de como os seres humanos agem na esfera moral e política. Isso, por certo, requer observação e experimentação por parte dos nossos estudantes. Uma postura crítica, por sua vez, surge quando conseguimos justificar e apresentar boas razões para explicar o funcionamento das coisas e o modo de agir dos seres humanos. Mais do que isso, significa analisar e compreender determinado fenômeno sem aderirmos de modo cego e dogmático ao conjunto de crenças e convicções que os seres humanos compartilham sobre este mesmo fenômeno que se está a analisar. Significa abordar o fenômeno sob a ótica da dúvida e a partir do ponto de vista do investigador que não possui um pré-conceito sobre aquilo que está a investigar. Para o desenvolvimento de uma postura investigativa e crítica, não vejo alternativa a não ser estimular a experimentação por meio do pluralismo metodológico e a partir da ideia de que não há uma única noção de verdade, mas, sim, as várias verdades que constituem os fenômenos. Se abordarmos a moral, uma investigação crítica da moralidade é aquela na qual consigo analisar o fenômeno moral sem moralismo, isto é, sem impor condutas e ditar como os outros devem agir. Questões como sexualidade, gênero, racismo, dentre outras, nos fazem refletir que talvez a melhor maneira de se abordar a moralidade seja a partir da compreensão de nossas diferenças, evitando, ao máximo, como disse acima, a imposição da “minha” moralidade para os outros cumprirem.
Qual é o principal desafio da formação técnica em um tempo de supremacia da tecnociência e de reformas educacionais que reduzem os campos do conhecimento que permitem o desenvolvimento do senso crítico e o discernimento dos valores que estão envolvidos no exercício profissional em nome do pragmatismo produtivo?
A tecnociência é vital na sociedade contemporânea, que já não pode prescindir da tecnologia. Daí a importância da formação técnica, que tem como um dos seus desafios incentivar a inovação e a criatividade dos estudantes. No entanto, quando falamos em educação, em especial em educação técnica, devemos pensar em uma formação integral da pessoa humana, que abranja questões técnicas e também um olhar crítico e reflexivo sobre a própria formação e prática profissional. Isso passa, por certo, pela formação de cunho humanístico. Assim, a formação técnica também requer um olhar crítico e reflexivo sobre ciência e tecnologia, que pode se dar a partir de uma perspectiva ético-política. Importante lembrar que a ciência, por si só, apresenta desafios epistemológicos, metodológicos e cognitivos que podem provocar uma reflexão crítica por parte dos alunos.
Natalia Pietra Méndez
A escola, enquanto instituição social, muitas vezes atua como reprodutora de opressões e segregações que ocorrem fora dela. Como tornar o espaço escolar um ambiente que acolhe e respeita as diferenças?
A escola pode ser um espaço de reprodução das desigualdades sociais, especialmente quando ela não questiona o efeito que determinados marcadores sociais de classe, raça, gênero e sexualidade podem produzir nas trajetórias de estudantes. Esses mesmos marcadores estão presentes também no conhecimento científico que, longe de ser neutro, é produzido a partir de determinadas realidades sociais e de sujeitos que também estão vinculados a uma visão de mundo. Por isso, um dos pontos fundamentais é que a escola seja capaz de se pensar dentro desse contexto das relações de poder. A escola é um microcosmo da sociedade e nela podemos encontrar as mesmas relações assimétricas que estão presentes em toda a sociedade. Há pessoas com mais ou com menos privilégios convivendo dentro do mesmo espaço escolar. Reconhecer esses aspectos e enfrentá-los é o primeiro passo para um ambiente que acolha e respeite as diferenças e que seja capaz de criar uma cultura em que o “eu” se aproxima do “outro” através do conhecimento, da solidariedade e da empatia. Esse exercício de reconhecer que não somos iguais e que os marcadores sociais produzem diferenças, inclusive no acesso à educação básica, técnica e universitária é fundamental dentro da escola. Como professoras e professores, podemos enfrentar essa realidade e estabelecer práticas que visem superar essas distinções. Um dos exemplos fundamentais, nesse sentido, é o enfrentamento ao racismo. O Brasil é um país no qual ser negro ou negra representa piores oportunidades de emprego e renda e maior exposição à violência. Portanto, se queremos enfrentar essa realidade, é preciso desenvolver ações continuadas nas escolas para – de fato – valorizar a cultura afro-brasileira, fazendo com que estudantes vejam o passado e o presente da população negra sendo representada de forma positiva nos currículos, nas aulas e nos materiais didáticos. A representatividade é fundamental para enfrentar esse círculo vicioso da exclusão através do racismo. Outro aspecto que considero importante é verificar como a cultura escolar atua para manter ou questionar as opressões e as segregações. Vou dar um pequeno exemplo. Quem convive em espaços escolares sabe que, atualmente, há uma diversidade significativa de organizações familiares e que, dependendo da realidade da comunidade onde a escola está inserida, aquela família nuclear heterossexual não representa boa parte dos arranjos. No entanto, nos conteúdos estudados em diversas disciplinas, ainda tratamos o modelo de família moderna nuclear (formado por um homem, uma mulher e filhos/as) como se este correspondesse a uma organização natural da sociedade. Mesmo a disciplina de História, que teria farto material teórico e empírico para discutir o caráter histórico dessa organização familiar, não faz este debate e o que vemos é a reprodução deste modelo de família que só se originou na modernidade como se ele sempre tivesse existido, desde as primeiras sociedades humanas. Além disso, muitas escolas ainda têm dificuldades em questionar festas escolares mais tradicionais voltadas à família e que celebram esse modelo nuclear. Ou seja, na prática, as crianças passam a vida dentro de escolas que dizem que seus modelos de organização familiares não são “normais”. Os efeitos para as crianças são extremamente nocivos, porque a escola deveria justamente ser o lugar de afirmar que família é aquela que acolhe e ama, independente da sua organização. Acredito que a escola precisa superar o discurso da igualdade, porque não basta dizer que somos todos iguais enquanto mantemos estruturas curriculares e práticas sexistas, racistas e LGBTfóbicas e segregadoras que apenas geram mais exclusão e evasão escolar.
De que maneira as influências que sofremos ao longo da vida com relação aos papéis de gênero tendem a afetar as escolhas profissionais de adolescentes e jovens?
A socialização das crianças ainda tem como um dos principais parâmetros o reconhecimento de diferenças que tomam como base a designação do sexo. Ser menino ou menina, em nossa sociedade, ainda tem um peso significativo nas experiências que serão oportunizadas ao longo da infância e da adolescência. Essas experiências diferentes estabelecem uma espécie de fronteira de gênero, definindo comportamentos e papéis desejáveis para ambos os sexos. Podemos observar esse fenômeno na divisão dos brinquedos e das brincadeiras infantis. Apesar de alguns avanços, ainda prevalece um binarismo de gênero sendo reproduzido pela indústria de brinquedos, pelas lojas (basta ver a organização dos espaços de brinquedos) e pelas próprias famílias. Outro aspecto a ser destacado é pensar em que medida a cultura escolar contribui para reforçar estereótipos que associam o feminino a uma incapacidade para determinadas profissões, especialmente vinculadas à ciência. Um estudo desenvolvido pela Universidade de Ilinois realizou experimentos com meninas de 5, 6 e 7 anos e constatou que, até os 5 anos, as meninas tendem a considerar que são inteligentes . A partir dos 6 e 7 anos, elas passam a associar a inteligência aos homens e o esforço às mulheres. Esse estudo conduz a pensar sobre os efeitos de uma educação sexista na elaboração de estereótipos que afetam a futura escolha profissional. Outro aspecto a ser considerado é que, nas últimas quatro décadas, houve um avanço importante no aumento da participação feminina no mercado de trabalho. Porém, em algumas áreas de atuação, especialmente aquelas vinculadas às chamadas ciências exatas, a representação das mulheres ainda é baixa. Então, há uma tendência de direcionamento para determinadas profissões que são consideradas mais adequadas. Ainda podemos questionar em que medida a persistência de uma dupla jornada de trabalho constitui um entrave para a liberdade de escolha das profissões. Muitas colegas que trabalham na rede pública estadual ou em redes municipais relatam que as meninas, desde muito cedo, se veem sobrecarregadas com tarefas domésticas, o que atrapalha a dedicação aos estudos. É um tema bastante complexo, e nosso olhar deve levar em conta a intersecção entre gênero, raça e classe social. Para uma menina branca de classe média ou alta, mesmo que existam estereótipos, será mais fácil realizar um percurso que destoe das expectativas quanto ao seu sexo. Será que uma menina negra terá essas mesmas facilidades? E se for negra e pobre? Enfim, o gênero não atua sozinho na construção de estereótipos que representam um entrave para a ascensão a determinadas profissões.
Nos últimos anos, temos visto a expressão “ideologia de gênero” ser mencionada em debates acerca da relevância da discussão ou não das questões de gênero nas escolas. Você poderia definir o significado da expressão e explicar qual é a sua origem?
A origem está relacionada a grupos cristãos e conservadores que agem, desde o começo dos anos 2000, em diversos países para tentar barrar políticas públicas que são identificadas como favoráveis à população LGBT e à liberdade sexual e reprodutiva das mulheres. Há registros de grupos que utilizam esse termo ou algum semelhante em todos os países da América Latina, na Europa e nos Estados Unidos. Além do lobby com governos, esses grupos procuram influenciar as escolas que não devem, segundo defendem, tratar de temas relacionados a gênero e à sexualidade. Aqui, no Brasil, começamos a observar a ação desses grupos em 2015, quando trabalharam para excluir as referências a gênero e sexualidade do Plano Nacional de Educação. A partir de então, proliferaram em diversos estados e municípios, com o intuito de retirar qualquer menção a diretrizes de educação que apontem para a necessidade de incluir a temática nos currículos e/ou na formação docente. O termo tem uma compreensão de ideologia muito limitada, pois parte da ideia de que existe uma verdade ontológica que a ideologia tenta esconder. Na compreensão desses grupos, existe uma disposição natural e divina que organizou a sociedade em homens e mulheres heterossexuais e qualquer arranjo divergente representa uma anomalia ou pecado, que devem ser combatidos. Dentro dessa visão, não é contemplada qualquer possibilidade de pensar que masculinidade e feminilidade, assim como a sexualidade, são categorias históricas e mutantes. Cabe lembrar que a própria noção de heterossexualidade surgiu apenas no final do século XIX, mas, nos materiais divulgados por esses grupos, essa e outras categorias são esvaziadas de qualquer historicidade. A ideia dos grupos é convencer as famílias de que há um exército de professoras e professores empenhados em interferir no que denominam de “opção sexual” das crianças. Seus materiais estimulam a denúncia contra docentes que abordam temáticas que sejam identificadas com gênero ou sexualidade, defendendo a primazia da família na formação das crianças e jovens. Nesse ponto, houve um fortalecimento da ação desses grupos a partir dos projetos de Lei intitulados “Escola Sem Partido”, que estão tramitando no Congresso Nacional e em algumas assembleias estaduais e municipais. Esse projeto se caracteriza por defender a suposta neutralidade do ensino e penalizar professores e escolas que sejam identificados como ideológicos. Apesar da inconstitucionalidade desses projetos, já apontada em nota técnica do Ministério Público Federal, o clima de desconfiança e cerceamento à liberdade de ensinar já se instalou, e estamos sentindo os efeitos nas escolas e universidades.