Uma manhã muito bem transfigurada

Manhã Transfigurada é um “porém” numa lista de inumeráveis textos. Certamente, a imagem daquela história monótona e recheada de palavras rebuscadas – e, por vezes, ininteligíveis (a não ser para o bom e velho Aurélio) –, que nos é entalada goela abaixo para a prestação de exames de vestibular, não traduz a obra de Luiz Antônio de Assis Brasil, cuja primeira versão foi editada em 1982, pela L&PM. O cenário é o Rio Grande do Sul do século XIX, época em que uma grande fazenda representava poder e a Igreja era vista como autoridade moral. A trama central se dá entre uma moça recém casada, um pároco e um sacristão, critica duramente a sociedade, imparcial em relação aos direitos da mulher, e apresenta a resposta feminina perante a violação de sua autonomia.

A trajetória da personagem Camila, a protagonista, começa quando ela se casa por obrigação com o sargento Miguel de Azevedo Beirão, na intenção de promover, novamente, a ascensão financeira e social de sua família. A chave que desencadeou toda a sequência de acontecimentos foi o pedido de anulação do casamento requerido pelo marido, ao descobrir, na noite de núpcias, que a moça com quem se casou não era mais virgem. A partir de então, Miguel parte em viagem e deixa a moça enclausurada em casa sob responsabilidade da Igreja. Quando Camila passa a receber apenas visitas do padre e de seu homem de confiança, o sacristão Bernardo, a história parte para o eixo psicológico ao confrontar dois sentimentos – personificados pelos personagens supracitados – através da protagonista: Bernardo, a vontade da mulher de se provar, de limitar a autoridade do marido apenas ao plano material e se sentir desejada; e o padre Ramiro, o amor, puro e verdadeiro, proibido e irreparável, inegável. O sacristão e o pároco são os vetores que promovem a descoberta de uma nova Camila, dona de si e de suas escolhas.

“O importante não é o que fazem do homem, mas o que ele faz com o que fizeram dele”. A identificação dessa obra necessária de Luiz Antônio de Assis Brasil não poderia ser maior com a filosofia de Jean-Paul Sartre: a trama é um relato honesto, que não deixa em nada a desejar, de uma ascensão psicológica diante de uma crise. É a vitória sobre o desafio que a época e a sociedade impuseram ao ser feminino: o de ser responsável pelas suas escolhas ante a repressão que tomava forma na própria casa da mulher, na figura que o marido representava.

Manhã Transfigurada já é, pelo próprio nome, uma obra inusitada e um atrativo para os olhares mais atentos: a ambiguidade criada logo no título dá a ideia de transformação, que é ratificada ao decorrer da história, quando a situação se transfigura e a personagem passa de simples esposa submissa a ser dona de si mesma. Para quem tem espírito curioso, necessidade de fugir de banalidades e para quem ainda valoriza a realidade na Literatura, o livro é um presente de Assis Brasil, que escreveu uma trama elaborada às minúcias, nada cansativa, que questiona valores e que, nem de longe, cheira a mais do mesmo.

Filipe Barbosa Cieslak

Filipe Barbosa Cieslak

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