O desafio do ensino integrado

Talvez aqueles que não atuam na educação profissional sintam estranheza diante das questões discutidas neste artigo, diferentemente dos docentes que trabalham no ensino técnico. Durante algumas décadas ainda recentes, os alunos que faziam o ensino técnico cursavam concomitantemente o ensino médio ou a denominada educação propedêutica. No entanto, no final da década de 90, em meio aos ventos neoliberais que sopravam forte em nosso País, houve uma reforma na educação profissional visando justamente seu ajustamento aos novos e ventosos tempos. Assim, todas as instituições de ensino técnico foram obrigadas a separar o ensino médio e o técnico, reforçando uma equivocada dicotomia na formação educacional e profissional. Felizmente, a partir de 2004, houve a edição de um Decreto Presidencial facultando as escolas relativamente à separação ou à integração. Neste novo contexto, um conjunto de ações, programas e documentos do Ministério da Educação, através da Secretaria do Ensino Técnico, passam a estimular a necessária integração entre as dimensões científicas, humanísticas, culturais e tecnológicas visando a uma formação sólida e qualificada de profissionais cidadãos.

A Fundação Liberato, plenamente identificada com esta concepção do ensino integrado, foi a primeira e é a única escola de âmbito estadual no Rio Grande do Sul que solicitou a implantação desta modalidade, encaminhando, em 2008, os seus novos Planos de Cursos para aprovação junto ao Conselho Estadual de Educação. Agora, trata-se de avançar e fortalecer o desejado e complicado processo de integração numa sociedade contemporânea altamente complexa, mas cuja tradição no processo educacional ainda é marcada pela fragmentação das diversas áreas do conhecimento. Como podemos avançar neste processo, o que devemos mudar na nossa práxis profissional?????? Trata-se de um debate importante que envolve a  organização curricular, mas, acima de tudo, um debate envolvendo questões de ordem teórica e epistemológica, sob pena de constituir-se em um edifício franksteiniano. Vemos experiências de ensino integrado com defesas pedagógicas evocando a teoria das competências como a referência para organizar e garantir a integração. Ora, esta posição nos causa muita estranheza, pois foi esta teoria justamente que fundamentou a obrigatoriedade da separação do ensino médio e técnico. Valemo-nos da resenha de Lucia Neves, professora do Programa de Pós-Graduação em Educação, da Universidade Federal Fluminense, feita na Revista Brasileira de Educação (2003, nº 22), sobre o livro de Marise Ramos, A pedagogia das competências: autonomia ou adaptação? (2001), para ilustrar esta contradição que identificamos entre ensino integrado e teoria das competências: “ A noção de competência desloca dialeticamente a noção de qualificação para um plano secundário, como forma de se consolidar como categoria ordenadora da relação entre trabalho e educação no capitalismo tardio. No seu marco, reconfigura-se a dimensão ético-política da profissão, mediante a ascendência da dimensão psicológica sobre a dimensão sociológica. Consolida-se a tendência de uma profissionalização de tipo liberal, baseada no princípio da adaptabilidade individual às mudanças socioeconômicas.”

Por isso, reconhecemos a experiência da Fundação Liberato, que, na sua história, possui vários exemplos de trabalhos e de iniciativas protagonizadas pelos docentes, para além do que consta nos currículos, que buscavam/buscam romper o isolamento das disciplinas e possibilitar uma visão mais sistêmica e integrada do conhecimento. No entanto, reconhecemos, igualmente, a necessidade de avançar a nossa experiência, o que inclui a proposição de uma organização curricular que dê conta do trabalho realizado, cuja referência teórica esteja baseada em uma concepção coerente com a formação integral no processo educacional e profissional. Neste sentido, estamos fortemente inclinados a entender a pesquisa como a grande possibilidade para o avanço e o fortalecimento da integração. A larga tradição acumulada nos 25 anos de Mostratec, Mostra de Ciência e Tecnologia fez com que hoje tenhamos em todas as séries dos cursos de educação profissional de nível médio este trabalho de pesquisa, reunindo professores de diversos campos dos saberes que orientam os alunos em um processo de construção do conhecimento igualmente multi e transdisciplinar. Mas, ao mesmo tempo em que reconhecemos que temos ainda muito para desenvolver e avançar neste processo, entendemos que o caminho percorrido é potente para a superação da fragmentação do conhecimento. Acreditando nisso é que foi proposta, neste ano, a implantação de um Núcleo de Educação, Cultura, Ciência e Tecnologia, justamente para buscar a necessária articulação e integração desses eixos no processo de formação educacional, envolvendo os trabalhos e as ações já desenvolvidos, aprimorando-as e propondo novas iniciativas que afirmem a nossa concepção integradora de educação profissional. A Fundação Liberato tem, ao longo da sua existência, consolidado essa concepção, inicialmente podemos dizer de forma bastante intuitiva, enfrentando todas as mudanças nas políticas educacionais e os debates ocorridos, buscando manter e aprimorar uma visão superadora de um certo desdém existente em relação ao ensino técnico. Ou seja, por ser ele dedicado ao mero adestramento profissional de uma camada social empobrecida economicamente, que não vislumbrava a possibilidade de cursar uma Universidade, até então destinada aos setores mais abastados, contentar-se-ia com um ensino de segunda categoria. As humanidades e as ciências não interessavam a esses segmentos, não lhe seriam úteis e necessários. Apenas aprender a exercer um ofício, de preferência sem precisar pensar, como diria Frederick Taylor. A Liberato sempre teve uma compreensão de que deveria oportunizar, especialmente aos segmentos mais carentes da sociedade, uma formação que envolvesse os melhores conhecimentos que foram construídos e acumulados na história da humanidade, envolvendo a cultura, a ciência, a tecnologia e o trabalho. Tal visão proporciona uma formação que garante uma base fundamental para os sujeitos lidarem com este tempo de mudanças tecnológicas velozes, protagonizando uma condição autônoma de pensar e atuar no mundo do trabalho e na sociedade, comprometidos com um padrão de civilização mais generoso e justo. Essa tem sido a utopia que nos tem feito caminhar. Seguimos perseguindo-a.

Maria Inês Utzig Zulke  Diretora Executiva Fundação Liberato

Maria Inês Utzig Zulke
Diretora Executiva
Fundação Liberato

Referéncia

RAMOS, Marise Nogueira. A pedagogia das competências: autonomia ou adaptação? São Paulo: Cortez, 2001, 320p.

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