(Des)caminhos do desenvolvimento brasileiro

Entrevista com Jonattan Castelli

A Área de Ciências Humanas da Fundação Liberato anualmente organiza uma discussão temática com o objetivo de promover a reflexão sobre assuntos contemporâneos, seguindo o Projeto Político-pedagógico da Instituição, que propõe uma prática pedagógica questionadora da realidade, do conhecimento e da sociedade. Em 2018, o tema do evento foi (Des)caminhos do Desenvolvimento Brasileiro, apresentado pelo economista Jonattan Rodriguez Castelli, que é Doutor e Mestre em Economia do Desenvolvimento pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Castelli realiza pesquisas nas áreas de desenvolvimento econômico, economia brasileira, instituições e mudança tecnológica. Foi professor da Universidade de Santa Cruz do Sul e, atualmente, é integrante do Movimento Economia Pró-Gente.

Apesar de o Brasil ser uma potência regional na América Latina e situar-se entre os grandes países em desenvolvimento, com uma das dez maiores economias do mundo, apresenta profundas desigualdades sociais e regionais, resultantes da nossa trajetória histórica, da nossa formação social e econômica, com profundas diferenças nas estruturas produtivas, nas relações de trabalho e nas condições de vida, tanto nas cidades como no meio rural. Dentro dessa perspectiva, Castelli apresentou os principais indicadores  de desenvolvimento, alguns aspectos da realidade brasileira e suas contradições e sugeriu medidas para a recuperação da nossa estrutura produtiva e a melhoria na distribuição de renda. Segue a entrevista concedida por e-mail às professoras Hildete Flores Rodrigues e Raquel Vieira Sebastiani.

  • Em que consiste o desenvolvimento socioeconômico de um país?

O desenvolvimento socioeconômico é um fenômeno amplo e complexo que abrange diferentes aspectos tanto da estrutura produtiva quanto da organização social e da distribuição de riqueza. Desse modo, antes de defini-lo, cabe destacar que o desenvolvimento vai além do mero crescimento econômico. Isto é, o desenvolvimento compreende muito mais do que o simples aumento do tamanho do Produto Interno Bruto (PIB) de um país em um determinado período de tempo.  É possível um país ter um PIB elevado (ou uma taxa de crescimento acelerada), mas não ser desenvolvido ou ser considerado um país rico.

A Índia, por exemplo, ocupou a sétima posição no ranking dos dez maiores PIB no mundo no ano de 2016, à frente de Itália, Brasil e Canadá. Sem embargo, Canadá e Itália são considerados países ricos enquanto a Índia é notavelmente desigual e com um nível elevado de pessoas na linha da pobreza, embora esse indicador venha caindo nas últimas décadas. Por esse motivo, observar apenas o tamanho do PIB de uma nação para considerá-la desenvolvida não é adequado.

Nesse sentido, o conceito de desenvolvimento acaba sendo multidimensional, englobando outros elementos, como o desenvolvimento industrial e tecnológico de um país, assim como fatores que ampliem a qualidade de vida de sua população. Aqui citarei três formas de se definir o desenvolvimento socioeconômico que não se esgotam em si e se complementam: a visão de Joseph Schumpeter, de Celso Furtado e de Amartya Sen.

Para o economista austríaco Joseph Schumpeter, o desenvolvimento diz respeito ao processo de avanço das forças produtivas a partir da incorporação de inovações. As inovações, para esse autor, se dividem em cinco tipos principais:  i) introdução de um novo produto com qualidade superior; ii) introdução de uma nova técnica de produção (tecnologia) capaz de ampliar a produtividade do trabalho; iii) descoberta de um novo tipo de matéria-prima; iv) abertura de um novo mercado; v) criação ou fim de uma posição de monopólio.

De acordo com Schumpeter, o surgimento dessas inovações é o que permite o capitalismo se dinamizar e a difusão delas possibilita o desenvolvimento econômico das nações, de tal modo que as regiões onde essas inovações ocorrem costumam liderar o processo de crescimento econômico no longo prazo. Enquanto isso, os demais países buscam se aproximar das primeiras a partir da incorporação dessas inovações em seu modo de produção.

O conceito de Celso Furtado, por sua vez, é um pouco mais amplo do que o de Schumpeter. Furtado, renomado economista brasileiro e uma das principais referências do estruturalismo da Comissão Econômica para América Latina e o Caribe (CEPAL), concebe o desenvolvimento como sendo um processo profundo de transformação da estrutura produtiva e das relações sociais. O desenvolvimento é o aumento da produtividade de um setor da economia, mas também é o efeito de realocação de recursos e distribuição de renda provocados pelo crescimento desse determinado setor.

Portanto, Furtado diferencia que, enquanto o crescimento é o aumento da produção (em quantidade), o desenvolvimento é o mesmo fenômeno quando observado do ponto de vista de suas repercussões no conjunto econômico de estrutura complexa. Em última instância, pode-se afirmar que o desenvolvimento para Furtado está relacionado com um processo de industrialização, uma mudança dos meios de produção e das relações de trabalho, que aproxime a estrutura produtiva de um país ao estado da arte da indústria mundial.

Por fim, para Amartya Sen (o último conceito que discorrerei a respeito) o desenvolvimento se refere ao desenvolvimento humano, à melhoria das condições de vida da população, indo além da esfera produtiva. Em seu livro clássico “Desenvolvimento como Liberdade”, Sen apresenta a ideia de o desenvolvimento ser um processo de expansão de liberdades. Assim, para esse autor, o desenvolvimento requer a remoção das principais fontes de privação de liberdade: pobreza e tirania, carência de oportunidades econômicas, negligência dos serviços públicos e intolerância ou interferência excessiva de Estados repressivos.

 

  • Quais são os principais indicadores que medem o desenvolvimento?

Podem-se citar quatro indicadores principais. O primeiro é o tamanho do PIB, isto é, da riqueza do país. Porém, como vimos acima, ele é bastante limitado, vide o caso da Índia – um país pobre com um PIB elevado. Por esse motivo, a fim de compreender demograficamente a riqueza de um país, utiliza-se o PIB per capita, um indicador que representa o valor do PIB de um país dividido pelo tamanho de sua população. Esse indicador consegue nos dar uma maior percepção sobre a renda nacional de um país, à medida que não basta saber o tamanho do produto nacional, é fundamental saber se ele é condizente com seu tamanho populacional. Assim, podemos ter um país com um PIB alto, mas um PIB per capita baixo, e vice-versa.

Por exemplo, o país líder do ranking de maiores PIB no ano de 2016 foram os EUA. Contudo, pelo critério do PIB per capita, o líder do ranking foi Luxemburgo, um país com uma economia muito menor que a dos EUA, porém mais rico por habitante. Um PIB per capita mais alto pode trazer importantes benefícios sociais, como uma maior renda individual e maior acesso a bens de consumo de uma nação. Por esse motivo, ele é um indicador preferível ao PIB.

Sem embargo, ele esconde muitas coisas, entre elas, a distribuição da riqueza. O que o PIB per capita nos diz é quanto há de riqueza numa região se a dividirmos igualmente entre toda a população. Na prática, porém, sabemos que a riqueza não está distribuída igualmente – mais do que isso, como apontado pelo economista francês Thomas Piketty em sua obra “O Capital no século XXI”, a concentração de riqueza vem crescendo nas últimas décadas. Não basta uma sociedade ter um PIB per capita elevado, se a maior parte da renda está concentrada na mão de uma parcela ínfima da população. Desse modo, há um indicador que mensura a distribuição da riqueza, o índice de Gini, cuja variação se dá em um intervalo de 0 a 1, e quanto mais próximo de 1 mais desigual é o país.

O nível per capita e a distribuição de renda, todavia, não são os únicos fatores relevantes para se mensurar o desenvolvimento de uma sociedade. Como apontado por Sen, há outros elementos ligados ao desenvolvimento humano que devem ser levados em consideração. Por exemplo, de que adianta uma nação rica com boa distribuição de renda, mas analfabeta ou com uma baixa expectativa de vida? Dessa forma, o último indicador mais relevante é o chamado Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), que busca retratar de maneira sintética e facilmente inteligível a qualidade de vida de uma população.

O IDH foi idealizado pelo economista paquistanês Mahbub ul Haq, inspirado na teoria de Amartya Sen, e lançado em 1990 pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) como alternativa mais completa para medir o desenvolvimento do que o PIB. O índice abrange indicadores de saúde (expectativa de vida ao nascer), educação (taxa de alfabetização e escolaridade) e renda (renda per capita).

O IDH varia de 0 a 1, sendo que quanto mais próximo de 1 mais desenvolvido é considerado o país. São considerados países de baixo desenvolvimento humano aqueles que atingem menos de 0,499 no índice; de médio desenvolvimento os que estão no intervalo entre 0,500 e 0,799 de alto desenvolvimento os países que atingem pontuação superior a 0,800.

 

  • Como o Brasil se encontra em termos de desenvolvimento na atualidade com relação aos demais países? E com relação a ele mesmo no passado?

Antes de mais nada, deve-se ressaltar que, apesar do que em geral é apresentado pela mídia, a situação brasileira não é de terra arrasada. Estamos passando por um período de crise econômica desde 2014, mas que tem suas raízes ainda nos efeitos da crise de 2008, na crise da zona do Euro em 2011 e em erros de política econômica dos governos de Dilma Rousseff e de Michel Temer. Contudo, a despeito da crise, o Brasil evoluiu muito nas últimas décadas no que diz respeito ao seu desenvolvimento socioeconômico. Para ilustrar essa evolução, vou elencar os indicadores citados na resposta anterior – PIB, PIB per capita, índice de Gini e IDH – para o caso brasileiro.

Em relação ao tamanho do PIB, a economia brasileira ocupa o oitavo lugar no ranking de maiores produtos internos brutos mundiais, mesmo após sofrer por um período de baixo crescimento anual. De 2008 para cá, as maiores economias mundiais tiveram seu ritmo de crescimento reduzido – tanto China, Europa, EUA e América Latina – mas, no Brasil, essa desaceleração foi mais intensa, especialmente no período entre 2014 e 2016, decorrência da crise financeira e das políticas de austeridade fiscal adotadas para resolvê-la.

Essa desaceleração no crescimento brasileiro se reflete na elevação de sua taxa de desocupação entre pessoas de 14 anos ou mais. Entre 2014 e 2018, ela seguiu uma tendência de crescimento, subindo de 6,4% no último trimestre de 2014 para 12,2 no primeiro trimestre de 2018.

Quando analisamos a trajetória do PIB per capita, podemos observar que, desde 1994 até o ano passado, houve uma evolução positiva desse indicador, o qual passou a crescer num ritmo mais acelerado a partir de 2004 e teve uma queda em 2014-2016, retomando o crescimento em 2017.

Em relação ao índice de Gini, houve uma melhora substancial nas últimas duas décadas, caindo de 0,599 em 1995 para 0,491 em 2015. Por trás da melhoria do índice que mede a concentração de renda está uma queda nas taxas de pobreza e de extrema pobreza nesse mesmo período, caindo de 35,1% para 13,9% e de 15,2% para 4,7%, respectivamente. No entanto, apesar dessa melhoria, o Brasil ainda é um dos dez países mais desiguais no mundo.

E no tocante ao IDH, o Brasil ocupa atualmente a 79ª posição no ranking mundial desse índice. Sendo que o nosso índice melhorou timidamente de 2014 (0,755) para 2017 (0,759). Mais do que isso, se observamos a evolução do IDHM (IDH para os munícipios brasileiros), notaremos que entre 1991 e 2010 (último dado disponível no Atlas de Desenvolvimento Humano Municipal) o Brasil partiu de uma situação em que 99,2% dos seus munícipios possuíam um IDH baixo ou muito baixo (menor que 0,599) e, em 2010, esse percentual se reduziu para 25,2%, o que revela uma evolução positiva substancial. Entretanto, embora o Brasil seja a economia mais dinâmica da América Latina, somos apenas o quinto IDH da região, ficando atrás de Chile, Argentina, Uruguai e Venezuela.

 

  • Que fatores mais influenciaram na evolução do desenvolvimento brasileiro nas últimas décadas?

O primeiro fator que se deve citar é o controle da inflação alcançado pelo Plano Real. A relevância da estabilidade dos preços se dá em razão de a inflação ser muito prejudicial à população por corroer sua renda e seu poder de compra. Por outro lado, a política de juros elevados impactou negativamente na concentração de renda do país, favorecendo o rentismo e os grandes bancos.

Outro fator fundamental na evolução do desenvolvimento brasileiro nas últimas décadas foi a retomada do crescimento econômico, particularmente, a partir de meados dos anos 2000. A partir de 2004, iniciou-se o chamado superciclo das commodities, no qual o preço dos produtos primários que exportamos (como a soja e metais não-ferrosos) cresceu, muito impulsionado pela China.

De fato, o crescimento da economia chinesa impulsionou o PIB brasileiro, a partir do aumento das nossas exportações para esse país. Por outro lado, um aspecto negativo que se deve destacar é o processo de desindustrialização que o Brasil passa desde o fim dos anos 1980 e que se intensificou com a abertura comercial indiscriminada e com a adoção de um câmbio valorizado (como forma de conter a inflação).

Um terceiro fator que explica o desenvolvimento brasileiro recente são as medidas adotadas pelo governo em favor de uma distribuição de renda mais equânime de combate à pobreza (como o bolsa família e a política de valorização do salário mínimo), de estímulo ao consumo (como a concessão de crédito para as famílias brasileiras), de estímulo à educação (como o FIES, PROUNI e criação de Universidades e Institutos Federais) e de investimentos públicos. Esse conjunto de medidas foram fundamentais para o processo de crescimento experimentado pela economia brasileira até 2014.

Por fim, o fator que acho fundamental é o fortalecimento da democracia (a qual, ao meu ver, vem sendo fragilizada de 2015 para cá). Sem democracia, essas conquistas sociais que possibilitaram o desenvolvimento brasileiro não seriam possíveis.

 

  • Ao seu ver, que medidas o Brasil deve adotar para melhorar o seu nível de desenvolvimento?

Acredito que devam ser adotadas medidas que visem a três objetivos: a recuperação da nossa estrutura produtiva; o desenvolvimento tecnológico; e a melhoria na distribuição de renda.

O primeiro objetivo visa reverter o profundo processo de desindustrialização que a economia brasileira vem passando e que reduz nossa competitividade internacional, assim como reduz a oferta de postos de trabalho. Para tanto, deve-se adotar uma política industrial que considere nossas especificidades assim como seja capaz de facilitar a adoção das novas tecnologias pela nossa indústria nacional. Além disso, a política industrial deve ser combinada a uma política macroeconômica adequada, afastando-se dos juros excessivos que entravam o investimento produtivo.

O desenvolvimento tecnológico está ligado ao primeiro objetivo, porém vai um pouco mais além. O avanço tecnológico a ser buscado deve ter como intuito não apenas ganhos em produtividade e competitividade das empresas brasileiras, mas a melhoria do padrão de vida da nossa população, como por exemplo na área de saúde. Para tanto, é necessário realizarem-se investimentos em educação – escolas, universidades, institutos de pesquisa – e estabelecer uma política de ciência, tecnologia e inovação moderna e que considere as especificidades e urgências do nosso país.

Por fim, a última medida é aprofundar e implementar políticas que possibilitem a melhoria na distribuição de renda e de riqueza na nossa sociedade. Uma melhor distribuição de renda pode estimular o consumo das famílias, melhorar o nível de saúde, alimentação e escolaridade da população, o que afeta positivamente o nosso IDH. Nesse sentido, penso em três tipos de política que, ao meu ver, seriam fundamentais: i) uma reforma tributária de caráter progressivo, isto é, que faça com que os mais ricos contribuam proporcionalmente mais na arrecadação de tributos; ii) manutenção e ampliação de políticas sociais como o Bolsa Família; iii) e políticas de combate à desigualdade de gênero e de raça.

A respeito da reforma progressiva, atualmente, a estrutura tributária é socialmente injusta, pois faz com que a população mais pobre e a classe média paguem, proporcionalmente, mais impostos do que os mais ricos.

No Brasil, quem recebe até 2 salários mínimos gasta em média 53,9% da sua renda em impostos, enquanto quem ganha mais de 30 salários mínimos apenas 29% de sua renda, segundo dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA. Isso se dá pois aqui a maior parte da tributação é indireta, recaindo, principalmente, sobre o consumo de bens e serviços. Desse modo, aqueles que gastam a maior parcela da sua renda com consumo acabam por pagar proporcionalmente mais impostos – é o caso da população de baixa renda e da classe média.

Além disso, há outra peculiaridade no nosso sistema tributário que intensifica a desigualdade social: desde 1996, existe a isenção de imposto sobre lucros e dividendos, isso faz com que os superricos quase não paguem imposto de renda. No Brasil, 71.440 pessoas recebem mais de R$ 108.480 por mês. Desse grupo, 47.626 pessoas (2/3) recebem sua renda apenas na forma de lucros e dividendos, que são isentos no país, resultando que não paguem imposto de renda. As outras 23.814 (1/3) recebem a maior parte da sua renda como participação de lucros e dividendos, resultando que, em média, paguem uma alíquota de 2,6% sobre a sua renda total. O que me parece, mais uma vez, injusto.

Dessa forma, uma medida importante seria realizar uma reforma tributária progressiva que revertesse o modelo atual. De acordo com Sérgio Gobetti e Rodrigo Orair, dois respeitados tributaristas e técnicos do IPEA, ao se realizar esse tipo de reforma, o governo federal arrecadaria, anualmente, um valor extra que chegaria a algo em torno de 2 a 3% do PIB – de 120 a 180 bilhões de reais.

Com esse dinheiro, se poderia investir mais em saúde, educação, pesquisa científica, investimentos em infraestrutura, etc. Antes, no entanto, é essencial que se revogue o teto dos gastos (EC 95). Sem isso, o valor arrecadado com a reforma tributária não poderá ser destinado aos gastos supracitados.

 

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