QUANDO BUSCAR TERAPIA?

O ser humano é o único ser que necessita de cuidados por um período de, no mínimo, 10 anos para que possa agir e cuidar-se sozinho. Essa é uma característica singular dos humanos. Ao contrário, por exemplo, de um dinossauro, que quando saía da casca estava pronto para sobreviver e ser um dinossauro.  Ainda por cima liberava a mãe e o pai da função de cuidadores. Aquilo que aparentemente parece uma desvantagem dos humanos é, na verdade, o que nos liberta de sempre ter que iniciar do zero, culturalmente falando. Um dinossauro não modifica a cultura porque nem conhece a cultura de seus antepassados. Claro que um indivíduo emocionalmente doente provavelmente gostaria, se tivesse a opção, de ser um dinossauro.
Então, como não somos DINOS, crescemos sob a influência e o conhecimento de nossa cultura, ou seja, a nossa herança familiar e social. E como não somos Dinos, também  herdamos coisas que não gostaríamos de ter recebido.
A terapia de família é uma experiência muito recente para a humanidade. Cuidar do emocional tem em torno de 100 anos. Cuidar da família, em grupo, tem cerca de 50 anos. A terapia de família nasceu pós-2ª Guerra Mundial e, portanto, cresceu durante a Guerra Fria. O que isso tem a ver com terapia? Nós somos adultos, frutos da concepção de mundo da GF (Guerra Fria), ou seja, ainda enxergamos as coisas e as relações de forma maniqueísta. O dualismo do mundo dividido em dois (URRSxEUA) aparece também na forma como encaramos nossos problemas afetivos, dizemos: “pertencem à natureza do fulano”, “a família toda era assim”, “eu também era assim” e, consequentemente, qual a necessidade de mudar se é traço de família?
Como entender que não existem somente dois caminhos para as coisas da vida? Os pacientes que buscam terapia de família são pessoas querendo libertar-se do mal-estar por sentirem-se diferentes e por não aceitarem a tradição familiar, mesmo que toda a família e o mundo lhe cobrem o contrário, mesmo que sintam-se ilhados.
A experiência e a literatura técnica têm nos mostrado que os indivíduos buscam a terapia quando não aguentam mais viver com a herança recebida. É o momento em que está insuportável e intolerável olhar-se no espelho e ver tudo o que foi feito da gente. Buscam um passo anterior ao medo que paralisa. Dificilmente um indivíduo “sadio” procura a terapia, exceto se ele está em processo de formação ou se crê que, mesmo sadio, é importante fazer terapia. Mas, de modo geral, recebemos pessoas em profundo sofrimento.
O indivíduo demonstra com sinais ou sintomas, um pedido de socorro, muitas vezes, velado ou inconsciente. Portanto, são os sintomas e um profundo sofrimento que levam as pessoas à terapia.
Quando percebem esses sintomas percebem, ao mesmo tempo, que estão no limite porque, de alguma forma, enxergam que a família de origem os  acompanhará eternamente e que não adianta mudarmos de estilo, de roupa, de amigos, de cidade ou até mesmo, de país. A família nos acompanhará sempre porque está dentro de nós, manifestando-se em nossos mínimos atos, desde como arrumamos a mesa ou o quarto até como cumprimentamos as pessoas, que amamos ou não. Portanto, na Sibéria ou na China, estaremos acompanhados de todos. É a descoberta do inexorável que faz uma pessoa buscar terapia, muitas vezes.
Para o indivíduo em sofrimento não existe diferença hierárquica entre passado e presente e a descoberta do que o faz sofrer vem misturado no tempo e no espaço, dentro do coração de uma pessoa.  E quando há uma certa diferenciação é sempre em favor do passado que passa a ter função de presente, ou seja, a pessoa vive como se o passado fosse atual porque ela sente dessa forma. É o passado que guia seus passos e a faz tomar decisões.
Isso funciona assim porque há coisas que marcam profundamente a vida de uma pessoa. Sabemos que o importante para um membro familiar pode não ser importante para outro. Isso porque estamos falando é de sentimento e não de ciência exata, ou seja, família X mais filho portador de deficiência física ou mental é igual a problemas escolares. Ou filho de pais separados é sinal de filho adolescente problemático. Não é assim que funciona na vida. Veja o que aconteceu quando a maioria da sociedade começou a experimentar o divórcio: mudamos a teoria ou vimos que nem todo o filho de pais separados é problemático? Enfim, é apenas um exemplo para refletirmos que cada família é uma história diferente e que cada membro da mesma família faz o seu próprio histórico.
Aquilo que aprendemos através da vivência familiar, é, certamente, a base de nossas ações presentes e futuras, e, quando olhamos, vemos que repetimos padrões de comportamento que não queremos repetir mais.
Mas como não repetir mais os padrões de que não gostamos e/ou que nos fazem mal? Como saber o funcionamento disso ou como fazer para mudar a engrenagem? É nesse momento que buscamos a terapia.
O que mais nos faz buscar terapia? Já tinha falado no limite que pode ser dado, também, por estarmos vivendo situações de risco, como: violência familiar ou social, membros experimentando ou vivendo há anos em estado de dependência química, por exemplo.  E buscamos, porque cremos que o paciente identificado deva ser tratado porque está causando dificuldades para a organização familiar ou porque desejamos ser cuidados por alguém que não encontramos em nossas relações.
É, também, muito comum as famílias desorganizarem-se em momentos de nascimento de filhos, de perdas de filhos ou de outras pessoas muito chegadas. Ou até quando os filhos saem de casa deixando um espaço que chamamos de “ninho vazio”. Nos nascimentos de filhos, observo que buscam terapia quando o casal que ainda não era um casal, transformou-se em uma família. Ou porque casaram já grávidos ou porque nasce um filho não planejado; aliás, as duas situações são muito comuns. Com filhos, em idade escolar também buscam terapia porque os filhos estão com dificuldades na escola, usando drogas ou ainda, porque os filhos recusam-se a assumirem funções que são originalmente dos pais: como cuidar do irmãos para que os pais   possam  vivenciar a adolescência que não puderam ter porque casaram muito jovens.
Com o “ninho vazio” experimentamos novos caminhos que não sabemos caminhar porque durante algumas décadas o caminho foi conhecido e rotineiro mas agora os filhos não precisam mais de acompanhantes. E o que fazer da vida? Como sentir-se útil e importante quando os filhos fazem o que todos nós fizemos: ir embora de casa.
É interessante ver que casais, independente do tempo de casados, descobrem que o encontro de duas pessoas é sempre mais que dois porque casam também com suas famílias de origem. Assim, se descobrem traços da mãe, da sogra e do sogro em atos do cônjuge. E não gostam do que percebem. O que fazer quando não se imaginava esses traços? O que fazer quando os filhos vão embora e precisa-se encarar esse tal casamento? Ou o que fazer quando acaba a paixão e passamos a enxergar mais do que uma cara bonita? Ou quando começamos a envelhecer e olhamos para outro sem gostar do que vemos?
Esse mesmo casal busca terapia, também, quando a bola de cristal quebra. Eles que a usavam para adivinhar o que o outro sentia, pensava, desejava, etc. É quando se nota que não há mais comunicação ou que nunca houve comunicação. Houve controle e adivinhação. Com a bola de cristal quebrada, não sabe mais como agir ou não quer mais adivinhar o que o outro pensa. Busca uma nova função ou papel nesse casamento, mas se esquece de avisar o outro que o jogo mudou.
Adivinhar tem sua importância no início de uma relação. É da sobrevivência da relação economizar os signos para encantarmos o outro e, com isso, ganharmos sua confiança. É quando o ser amado percebe, nos atos de adivinhação, um estado amoroso de dedicação plena. Mas e depois? Quando se cansa de brincar de mágico?
Busca-se, por fim, a terapia, quando queremos esquecer algo que vivemos. Quando as marcas deixadas pelo passado insistem em aparecer e só o que queremos é esquecê-las. Paga-se em ouro pelo esquecimento mesmo sabendo dessa impossibilidade. Muitas vezes, somatizando e criando amnésias, elas insistem e aparecem, quando menos se espera.
Com a impossibilidade de apagar as dores o que  o ser humano inventou?
Criou a idéia de que o indivíduo somente aprende com sofrimento. Ou melhor, até aprende sem sofrimento mas não tem a mesma importância ou força de aprendizado se não for com dor.
Isso é como uma compensação a dor. Por quê? Uma forma de aliviar a dor mostrando o quanto se aprendeu com a situação.
Não creio que o aprendizado sem dor tenha significado menor ou de menos força do que com dor. Falamos do status adquirido pelo sofrimento tendo em vista a necessidade de se esquecer a dor. Há famílias que se unem em função da dor, da doença ou da morte e têm muitas dificuldades em reunir pela alegria ou festa. Parece não serem autorizadas ao riso. Assim, propagandeamos a idéia ocidental de que prazer é pecado, que prazer não traz aprendizado e que prazer e lazer são coisas de desocupados. Até criamos as férias como desculpas ou como uma autorização para a desocupação. Propagandeamos a idéia de que medimos a grandeza de uma pessoa pela quantidade de sofrimento que teve na vida. Então, é mais importante e damos mais status quando sabemos que aquela pessoa já viveu tal situação, já perdeu um filho, já foi alvo de violência. Na nossa sociedade, é importante sofrer.
O aprendizado com sofrimento traz junto de si muita dor. É muito pesado e difícil. Aguentamos isso porque vivemos a sociedade do sofrer. Esse aprender com dor mantém a dor original intacta. A cada vez que usufruir da lição que aquela vivência trouxe, a dor vem junto. A dor começa a fazer parte da natureza dessa lição. E aí vai doer tudo de novo.
Então, por que mantemos essa idéia? Ou pela questão cultural do ocidente ou porque o homem ocidental encontra, assim, uma maneira de sobreviver à dor: colocamos como mais importância  numa possível lição, mesmo que não tenha lição para se tirar. Encontraremos alguma lição. Diria ainda que é uma forma do ser humano resistir, se rebelar, a própria dor.
Compensamos a dor com a lição.
Mas isso esconde e retira de nós o prazer de viver. Coloca como inexorável, de novo, a idéia de dor. Dor é Natural, deve existir porque aprenderemos algo. Não creio nisso. Creio, inclusive, que pode se passar por grandes momentos de dor e não se aprender nada.
Dor é dor. Apenas isso.

 

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Sônia Porto Machado
Professora da Funação Liberato
Terapeuta de família e de casal

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