Três por um real

O barulho dos trilhos e o sacolejo para um e outro lado. Pegava sempre o trem na Estação Inicial, por isso, conseguia sempre um lugar para sentar. Aos poucos, os vagões iam se enchendo de gente, uns voltando do trabalho, outros indo do trabalho para aula – como eu. Naquele dia, em especial, não estava tudo bem.
O que teria sido? A procura permanente por aqueles olhos claros, que tempos antes já me haviam fitado na estação? Aquele olhar que muito provavelmente não voltaria a ver – por essas coisas da vida, que ora nos unem, ora nos separam para um sempre que, de repente, pode durar menos que imaginamos – seriam esses conflitos que me afligiam?

Ou teria sido alguma limitação financeira? Embora disciplinado com as contas, vivendo de maneira simples, mas digna, poderia ter sido uma dessas coisas inesperadas, algum objeto que estraga e custa algum dinheiro para consertar.

Ou será ainda que seria alguma preocupação com os estudos? Alguma disciplina que não estava conseguindo acompanhar e que teria que encarar naquele início de noite que se seguia a um dia um tanto cansativo. Ou talvez aquela tristeza que todo mundo sente às vezes – mas que ninguém consegue explicar de onde vem.
Mas o fato é que, no trilhar do trem, alguma coisa aconteceu. Foi um daqueles gurizinhos que aparecem vendendo alguma coisa nos vagões. Esse gurizinho me ofereceu algumas balas – talvez daqueles pacotes pequenos de pastilhas, 3 por um real, algo assim. Certamente respondi ao guri com um monossílabo bufado, provavelmente não correspondendo a palavra nenhuma, mas deixando claro que eu não estava disposto a retirar os olhos de alguma coisa que eu lia, e da triste viagem de pensamentos que eu fazia naquele dia. Mas o guri insistiu:

— Ah, tio, vai aí. São tri boas essas pastilhas, só um real, só pra me ajudar…

Aquele tom gentil, sem “coitadismo” me trouxe de volta dos devaneios com as matizes do tom azulado dos olhos que eu queria que estivessem me mirando na estação, antes de ter entrado no trem, e me fez olhar para o garoto. Estava vestido razoavelmente, a caixinha de balas numa das mãos. Exibia um sorriso. Talvez uns dez anos, eu calculei, tentando afastar ainda a ideia de que talvez não tivesse olhado bem em todas as direções dentro da estação, e que talvez a dona dos olhos azuis de fato estivesse lá no momento em que eu passei na roleta.

Não consigo me lembrar se comprei ou não as pastilhas, pois já faz algum tempo que esse dia aconteceu. Mas como o garoto sorridente já tinha percorrido todo o vagão oferecendo seus produtos, sentou-se próximo de onde eu estava, largou a caixinha de balas no banco e colocou uma das mãos num bolso da calça. Tirou de lá um punhado de bolitas. Vi um relance de passado quando o guri olhava através das bolitas, tentando observar bem as cores. Quando ele percebeu que eu observava a cena, me mostrou uma, dizendo:

  1. Esta é a mais bonita. Tenho mais um monte em casa.

E continuou com aquele sorriso… Acho, até hoje, que o guri talvez não precisasse vender balas para comer. Talvez ele vendesse apenas para comprar suas bolitas, e ficar admirando elas ali, num intervalo entre uma estação e outra, quando o sol poente dá um colorido bonito ao fim de tarde que eu insistia em querer pintar da cor sem graça das angústias que eu mesmo metabolizei aquele dia inteiro.

Nunca mais esqueci aquele dia. O guri me pedindo para ajudá-lo, mas qualquer ser vivo com sentidos mais apurados que observasse os dois sentados em bancos próximos, iria chegar à conclusão de que quem estava precisando de ajuda era eu. Porque afinal, alguém com trabalho, enquanto há tantos desempregados, cursando uma universidade, enquanto há tantos analfabetos, com saúde, enquanto há tantos doentes, fica ali, daquele jeito, morto-vivo dentro de um vagão, incapaz de sorrir, de observar o mundo à sua volta, e agradecer por tudo? Consegue ainda ficar triste e com tão pouco senso de humor e solidariedade? E de outro lado, alguém tão simplesmente se apresenta e consegue estar radiante?

São perguntas que me faço. São respostas que não tenho. A representação do absurdo que fui aquele dia. Só tenho lutado muito para não mais ficar feito um zumbi dentro do trem. A vida é boa, me esforço para acreditar. Boa como minha música favorita, como um pacote de pastilhas, boa na medida em que me esforço para que ela seja boa.

Não mais vi o guri. Não tenho mais andado de trem. Mas tenho observado com mais atenção o luar que passa pelo pára-brisa na alta noite, quando retorno para casa após cada dia intenso. O céu está mais azul hoje, e já não preciso mais procurar o azul daqueles olhos.
Deixei uma estação para trás…

Auxiliar de Ensino do Curso de Química da Fundação Liberato

Auxiliar de Ensino do Curso de Química da Fundação Liberato

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