ARTIGO: O trabalho com a disciplina de Língua Portuguesa em uma escola técnica

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A cronista Martha Medeiros, certa vez, escreveu um texto intitulado “Quem precisa saber escrever”, em que compartilha um e-mail que recebera de um leitor que, ao final do texto, dizia: “Desculpe por não escrever o português corretamente, mas, sabe como é, sou engenheiro” (MEDEIROS, 2005, p. 6). O raciocínio desse leitor sugere uma ideia bastante difundida no senso comum de que profissionais das áreas mais ligadas às ciências exatas e tecnológicas não necessitariam de boas habilidades no uso da língua portuguesa, tanto na leitura e na escrita, quanto na oralidade.

Na Fundação Liberato, uma escola técnica de ensino médio, o trabalho com a disciplina de Língua Portuguesa pode suscitar tal discussão: mas por que preciso de língua portuguesa se eu vou ser técnico? Se vou ser cientista? Não devo dar ênfase à língua inglesa, se quero apresentar minhas descobertas em feiras internacionais? Não devo priorizar as disciplinas técnicas? As respostas parecem-me óbvias!

Em nossas mais variadas práticas sociais, só interagimos por meio de textos, que são organizados sempre em um determinado gênero textual (BAKTHIN, 2003; BRONCKART, 1999). Não restrinjo, neste artigo, o conceito de texto à escrita. Santos et. al afirmam que, quando pedimos que as pessoas reconheçam o que é um texto, geralmente a resposta relaciona-se

[…] a qualquer material escrito, como carta, notícia de jornal; quase ninguém se lembra da conversa ao telefone ou do bate papo na mesa de um bar. Porém, quando os PCN defendem o ensino com base em textos, trata-se de textos orais e escritos. Mais que isso: para compreender certos textos, é necessário observar outras linguagens além da verbal (SANTOS et al., 2015, p. 23).

Essas outras linguagens de que falam as autoras relacionam-se aos textos multimodais ou multissemióticos (ROJO e MOURA, 2012). Segundo esses autores, em nossa sociedade contemporânea, o letramento (uso social da leitura e da escrita) transformou-se em multiletramentos, pois “são necessárias novas ferramentas — além das da escrita manual (papel, pena, lápis, caderno, giz e lousa) e impressa (tipografia, imprensa) — de áudio, vídeo, tratamento da imagem, edição e diagramação” (ROJO e MOURA, 2012, p. 21). São, necessárias, segundo eles, novas práticas de produção, com novas ferramentas, e novas práticas de análise crítica na condição de receptor.

O trabalho com Língua Portuguesa na Fundação Liberato, ao buscar uma proposta baseada em leitura e produção de textos multimodais pertencentes aos mais variados gêneros textuais, busca possibilitar ao aluno várias formas de ele interagir, por meio de várias linguagens, nas mais variadas práticas sociais. Saber usar a língua e outras linguagens tem importância crucial não só na escola e no mundo do trabalho de um técnico. Relaciona-se, sobretudo, com a cidadania. E esse trabalho começa a ser feito desde a 1ª série.

Na escola, considerando que sua língua materna é o instrumento para a aprendizagem dos outros componentes curriculares, como o aluno conseguirá compreender os conteúdos de todas as outras disciplinas se não tiver habilidades de leitura crítica e de interpretação? Como ele conseguirá registrar suas ideias de pesquisa científica se não por meio de um caderno de campo, de um relatório escrito? Como ele conseguirá expor, em feiras científicas, aos seus professores, a outros avaliadores e à sociedade em geral os resultados de seu trabalho se não por meio de uma apresentação oral — e mais, de uma apresentação oral que saiba adequar a linguagem a seu público, seja ele especialista ou leigo? Como ele conseguirá ter acesso a ideias de outros cientistas se não por meio da leitura de textos científicos? E mais ainda: as leituras dos textos literários e não literários não possibilitarão a ele o desenvolvimento de competências socioemocionais, tão importantes para um pesquisador que pense em problemas de pesquisa com relevância social?

E fora da escola, como ele conseguirá ser um leitor crítico de notícias, reportagens, anúncios publicitários, postagens em redes sociais, filmes, enfim de textos multimodais que aparecem na mídia? Como distinguir uma notícia verídica das fake news se não por meio de um trabalho com leitura crítica? E no mercado de trabalho, futuramente, como ele conseguirá também convencer clientes e outros colegas de suas ideias, seja de forma oral ou de forma escrita? Certamente, não será com um texto informal, tão típico de alguns aplicativos de mensagens instantâneas digitais. O uso da língua e de outras linguagens relaciona-se, pois, à imagem profissional e pessoal de um técnico e, sobretudo, à construção de sua cidadania.

Prof. Daiana

Daiana Campani
Professora de Língua Portuguesa e Literatura
Fundação Liberato

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. 4.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

BRONCKART, Jean-Paul. Atividade de linguagem, texto e discurso: por um interacionismo sociodiscursivo. São Paulo: EDUC, 1999.

MEDEIROS, Martha. Quem precisa saber escrever? Revista O Globo, ano I, n. 42, p. 6, 15 maio 2005.

ROJO, Roxane; MOURA, Eduardo. Multiletramentos na escola. São Paulo: Parábola Editorial, 2012.

SANTOS, Leonor Werneck et al. Análise e produção de textos. São Paulo: Contexto, 2015.

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