Entrevista com as pesquisadoras Alessandra Maia e Letícia Perani

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Nos dias 3 e 4 de dezembro de 2020, a Fundação Liberato promoveu o 27º Seminário Internacional de Educação Tecnológica — SIET, com o tema Educação, pesquisa e tecnologias: possibilidades para além da pandemia. A atividade de encerramento do evento, Mídias Digitais e Entretenimento no Ensino e Aprendizagem, contou com a participação das palestrantes Profa. Dra. Alessandra Maia, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro  (Uerj), e Profa. Dra. Letícia Perani, da Universidade Federal de Juíz de Fora (UFJF).  As professoras concederam uma entrevista sobre suas temáticas de pesquisa especialmente para esta edição da Expressão Digital.

Entrevistadas:

Alessandra Maia (AM) é pós-doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal Fluminense (UFF). Pesquisadora de Inovação do Laboratório de Mídias Digitais, com bolsa Qualitec/InovUerj na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). É doutora e mestre em Tecnologias de Comunicação e Cultura pelo PPGCOM/Uerj. Pesquisa temas relacionados a produtos da cultura digital, como espaços lúdicos de desenvolvimento sensorial e social, em especial videogames, e o potencial de aprendizagem e desenvolvimento de habilidades cognitivas importantes para as diferentes áreas de interação social. Atualmente, desenvolve o projeto “‘MEDO DO DESCONHECIDO’: sonoridade e performance nos videogames de horror”.

Letícia Perani (LP) é professora adjunta do Instituto de Artes e Design da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). É colíder do grupo de pesquisa CNPq “Histórias Interativas: estudo e projeto de ludonarrativas” e pesquisadora associada ao grupo de pesquisa “Comunicação, Lúdico e Cognição” — CiberCog, do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPGCom/Uerj). Mestre e doutora pelo PPGCom/Uerj e graduada em Comunicação Social — Jornalismo pela UFJF. Membro-fundadora e conselheira da divisão brasileira da Digital Games Research Association — DiGRA. Seus temas de pesquisa são tecnologias digitais, lúdico e arte-educação.

Entrevistadores:
Daiana Campani (DC) é professora na Fundação Liberato e editora da Expressão Digital.
José de Souza (JS) é professor na Fundação Liberato e coordenou o 27º SIET
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DC e JS: No início da palestra no SIET, vocês fizeram reflexões sobre os desafios da educação na pandemia, apontando que o uso das tecnologias digitais, antes restrito a aplicações pedagógicas bem específicas ou a estudos experimentais, passou a ser obrigatório para os professores. Quais são os desafios desse novo contexto?

AM e LP: Essa é uma questão bem profunda, que nós estamos discutindo muito no nosso trabalho. Nós acreditamos que muitas das experiências que tivemos durante a pandemia devem continuar. Muitos professores relataram um prazer enorme em fazer esse ensino remoto e trabalhar de forma remota com seus estudantes. Até mesmo pela questão do deslocamento, porque, especialmente para quem mora em grandes cidades, o deslocamento é difícil e você tem, como professor, horários que são difíceis também. Você acorda às sete horas da manhã e, então, se já estiver em casa, é uma situação mais confortável. Mas temos também esses desafios, porque a produção de material para o ensino remoto/ensino digital em si exige muito cuidado com a linguagem, que deve ser uma linguagem que é diferente da nossa linguagem tradicional de sala de aula. Temos que pensar mais nos recursos audiovisuais, na nossa própria fala e em como o estudante vai receber nossa aula, porque muitos não têm acesso como gostaríamos às tecnologias digitais. Muitos têm um acesso muito precário ou não têm equipamentos em casa, ou a internet é muito ruim, ou os dois. Então, o grande desafio do professor hoje é adequar a sua linguagem, o seu conteúdo de sala de aula, para a execução em uma atividade que é necessariamente mediada pelos dispositivos técnicos e, principalmente, buscar como superar os desafios de conexão dos estudantes e mantê-los motivados, já que temos um contato menos próximo. Não há esse contato corporal, mas temos que manter a motivação e esse contato sempre de forma muito próxima.

DC e JS:  Vocês procuram discutir as mídias digitais na educação enfatizando seus recursos lúdicos e de entretenimento. Qual a importância dessa perspectiva e o que é necessário para que o professor consiga colocá-la em prática?

 AM e LP: Esta é uma ótima questão! Primeiro, temos que avaliar que o lúdico é uma forma cultural que sempre esteve presente no nosso cotidiano. Se você pegar pesquisadores como Johan Huizinga, que escreveu o clássico livro Homo ludens, que aqui no Brasil foi lançado pela Editora Perspectiva, você tem estudos históricos que apontam a influência do lúdico, que é a influência do divertimento, do brincar de várias formas. Essas atividades são muito importantes no cotidiano, não só dos seres humanos, mas também dos animais (os animaizinhos brincam, especialmente quando são filhotes). O lúdico é muito importante para o desenvolvimento dos seres vivos. A partir, mais ou menos, da Idade Moderna, pesquisadores começaram a perceber que o lúdico era algo interessante para ser aplicado em sala de aula. O famoso filósofo Leibniz falava que, a partir dos jogos (e ele estava se referindo aos jogos matemáticos), a mente humana conseguia explorar possibilidades que não conseguia em atividades do nosso cotidiano. Através do lúdico, exploramos novos tipos de ideias, novos tipos de conteúdos, e, com o tempo, os pesquisadores, especialmente da área da educação e da comunicação, começaram a observar quais as características das atividades lúdicas que permitiam a aprendizagem e que poderiam ser utilizadas em processos de ensino e aprendizagem. Assim, começou-se a notar que, para você entrar na atividade lúdica, você tem que adquirir conhecimentos. Você tem que estar atento às regras do jogo, àquele conjunto de regras que são colocadas para que o lúdico aconteça. A partir disso, você vai ter que colocar essa informação em ação, porque o lúdico sempre é a ação! O lúdico é responsável por aprendizagens contextualizadas, o que é muito interessante para quem trabalha com educação. Então é nesse contexto de atividade contextualizada que o lúdico opera, e o que é necessário para o professor colocar isso em prática é principalmente um estudo para compreender como as atividades lúdicas funcionam. É preciso entender um pouco o que é o lúdico, suas características e, principalmente, pensar como essas características lúdicas podem ser aplicadas na sua sala de aula. Não é uma receita de bolo, é algo sobre o qual o professor precisa refletir para ter o melhor aproveitamento. Então, criar uma atividade lúdica para sala de aula é entender o contexto de sua própria aula e tentar entender uma forma de construir uma atividade que passe essas informações contextualizadas para seus estudantes e que seja principalmente divertida. Existe jogo que não é divertido!

DC e JS: Durante a palestra, vocês mencionaram a intrínseca relação entre corpo e mídias digitais e deram destaque aos muitos estímulos sensoriais que estão envolvidos no consumo e na produção dessas mídias. Poderiam explicar essa ideia e refletir sobre as implicações disso para o trabalho docente e para a aprendizagem do estudante?

 AM e LP: No consumo de qualquer mídia, há uma relação sensorial envolvida de forma intrínseca. Quando nós estamos lendo um jornal, por exemplo, fazemos uso da nossa visão; podemos fazer uso do tato também para mudar as páginas. A nossa própria postura corporal influencia muito em como vamos adquirir essa informação. Precisamos, na hora da leitura, estar relaxados, confortáveis para conseguirmos realmente entender o texto. Quando começamos a trabalhar com mídias digitais, percebemos que elas são muito sensoriais. Nós temos que trabalhar com vários sentidos ao mesmo tempo. Quando estamos na frente do computador, temos os estímulos do som, da visão das imagens, do tato. Precisamos manipular o mouse e o teclado, então o tato torna-se extremamente importante também para a aquisição da informação. Muitas vezes, na docência, da forma como ela é vista tradicionalmente (não só a docência, mas toda forma de produção e de consumo de informação, o que também vale para os meios de comunicação), só se pensou na parte mais lógica desse processo, que é o verbal em si, que é o você construir uma informação de forma verbal, seja escrita ou oral, e você passar e repassar essa informação apenas dessa forma, sem considerar esses outros estímulos sensoriais ou os estímulos sensoriais que estão envolvidos no processo de ensino e aprendizagem, por exemplo. Então você trabalha com estudantes que vêm de um cotidiano no qual eles são hiperestimulados. Eles estão usando o celular e o computador o tempo inteiro. Eles têm o YouTube, o Tiktok,  que têm muito apelo sensorial. Você coloca esse estudante em sala de aula para o trabalho de uma forma que é apenas verbal, ele vai se sentir naturalmente entediado, porque há uma desconexão muito grande entre o que ele vivencia no seu cotidiano, especialmente de consumo de informação, e o que ele está vivendo em sala de aula. Então, quando pensamos no trabalho docente, não só durante o ensino remoto, mas também durante a sala de aula presencial, temos que pensar nisso e nessa inserção desse jovem que está hiperestimulado, em como vamos conseguir despertar a atenção dele para os nossos conteúdos. Precisamos prestar atenção nessas questões de sensorialidade. Isso envolve, por exemplo, você construir uma sala de aula que seja confortável, que não seja abafada ou muito fria, em que não bata sol no rosto do aluno. Precisamos pensar em salas de aula que sejam adequadas e também nas nossas próprias atividades, em como podemos incorporar os estímulos sensoriais. Isso vem muito dos recursos audiovisuais e/ou interativos com que podemos trabalhar em sala de aula. E, para isso, as atividades lúdicas são recursos importantes.

DC e JS: O trabalho com as mídias de entretenimento em sala de aula pode ser feito de uma forma tradicional, somente como material de apoio, mas vocês propõem utilizá-las de uma outra forma: incorporando-as como metodologia principal. Como é essa proposta, qual a concepção de educação que subjaz a ela e quais foram suas experiências ao utilizá-la, seja em sala de aula, seja em projetos extraclasse?

AM e LP: Isso é muito natural para nós. Somos formadas em Comunicação e somos também até hoje do grupo de pesquisa da professora Fátima Regis, da Uerj, “Comunicação, Lúdico e Cognição”, que trabalha também com a exploração de formas de entretenimento, que não só formas lúdicas. Mas precisamos pensar que as formas de entretenimento fazem parte do cotidiano dos nossos estudantes. Então muito se discute hoje uma concepção de educação contextualizada, que leva em conta também o cotidiano desse estudante. Isso vem muito de uma concepção que, no Brasil, vem de Paulo Freire. Paulo Freire chegou até a discutir, no final da vida, sobre os usos da tecnologia digital, que estava ali começando, não com profundidade, porque não deu tempo, mas essa concepção de uma educação contextualizada está muito ligada com o Paulo Freire e com muitos teóricos que se preocuparam em discutir as novas formas de educação do cotidiano. Por exemplo, há um livro chamado Reinventando a educação, do professor Muniz Sodré, que é um professor da área de Comunicação. É um livro no qual ele discute justamente essas questões de como é importante pensar a educação contextualizada para tratar justamente dessa desconexão dos estudantes com a sala de aula.

Em nossas experiências, tivemos uma recepção muito importante, muito positiva dos estudantes. Na Universidade Federal de Juiz de Fora, por exemplo, enquanto professora, Letícia, quando vai demonstrar questões mais técnicas, por exemplo, de formatos de arquivo multimídia, procura levar vídeos e músicas mais atuais para demonstrar, por exemplo, como o MP3 funciona. São músicas mais contemporâneas, e os estudantes acabam procurando e ouvindo depois. Então isso nos deixa muito felizes, porque a professora está compartilhando uma experiência cultural com eles. Em relação aos vídeos, Letícia usa seriados que sejam atuais e animes, que são formas de entretenimento que eles consomem e que nós consumimos também. Então é importante que o professor ou a professora se sinta confortável com esse conteúdo com que está lidando. Não adianta só colocar o conteúdo em sala de aula por colocar porque acha que é importante. O professor, nessa perspectiva de educação contextualizada, precisa se sentir confortável e sentir que tenha também esse interesse por aquele conteúdo, porque senão ele não vai conseguir engajar o estudante na atividade. Não adianta.

DC e JS: Muitas vezes, até mesmo dentro de uma mesma rede ou de uma mesma escola, encontramos diferenças no acesso à tecnologia e na qualidade dos equipamentos utilizados por professores e estudantes. De que forma professores que enfrentam esses desafios podem levar essa proposta à sala de aula?

AM e LP: Em muitos estados, como Rio de Janeiro e Minas Gerais, nós temos o conhecimento de que o uso de celulares é proibido em salas de aula, até porque o celular é visto como uma distração ou como um gerador dessa desigualdade. Por exemplo, o professor permite o uso do celular para consulta, mas um estudante vai ter o recurso e o outro não. Então, isso acaba gerando uma desigualdade e uma discrepância muito grande em sala de aula, que também não é, de forma alguma, desejável. Mais importante do que trabalhar com a tecnologia em si, é entender as características que essas tecnologias nos trazem, no caso especialmente as sensorialidades, essas formas sensoriais de você entender o consumo e a produção da informação e como você pode levar isso para a sala de aula mesmo não utilizando a tecnologia digital.

Então, quando falamos de jogos, nós propomos muitas vezes que o professor trabalhe, por exemplo, com um jogo de tabuleiro, que é um jogo que podemos fazer com peças de papel. É possível trabalhar com atividades que sejam ativas e que sejam sensoriais em sala de aula. Justamente para essas situações nas quais as mídias não estão disponíveis para escolas, podemos estudar formas de trazer essas características que nós observamos nas mídias digitais, com materiais ditos tradicionais, como o papel, que é algo que é facilmente disponível. Se tem algum “segredo” para executar esse trabalho, é justamente você conhecer e entender esse contexto: o que as mídias digitais trazem e como podemos aplicar essas lições, mesmo em situações em que nós não podemos utilizá-las.

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