O poder da palavra, a despeito de tudo…

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Seguramente foi a palavra que manteve viva Anne Frank, que a preservou durante aqueles sombrios anos de terror. Foi através da palavra que ela pôde chegar a uma frase tão fundamental como: ‘A despeito de tudo, ainda creio na bondade humana’. Uma frase que pode ser simplória, mas que deve ser verdadeira; é preciso que a tornemos verdadeira.”
Moacyr Scliar[1]

Embora esteja cada vez mais difícil tornar verdadeira a crença da menina Anne Frank, morta durante a Segunda Guerra Mundial, as palavras do cronista reforçam em seus leitores a urgência de que isso aconteça.

E foi no rastro do desejo de Scliar que as duas propostas de atividade de produção textual neste início de ano, encaminhadas aos estudantes de primeira série (turmas 1124, 3111, 3112, 3123, 3124, 4111 e 4112), tiveram como objetivo a sensibilização para os efeitos devastadores de uma guerra, tanto aquela que ceifou os sonhos da pequena Anne, quanto a que envolve Rússia e Ucrânia, longe territorialmente, mas trazida para bem perto de nós pela mídia.

A primeira atividade, ancorada na ideia de que a arte pode ser uma “mentira que revela a verdade”, como afirmava Pablo Picasso, pintor espanhol falecido em 1973, propunha aos estudantes que criassem um texto literário a partir da seguinte imagem:

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Na imagem, uma mulher ucraniana confronta verbalmente um soldado russo, questionando a presença das tropas invasoras em seu território. Sem colocar em debate as justificativas de ambos os países para iniciar ou manter o conflito, a atividade reivindicava um olhar sensível para o sentimento humano em meio a uma guerra. Posteriormente, por meio das produções dos estudantes, discutiram-se alguns aspectos da linguagem literária.

O resultado dos trabalhos escritos foi surpreendente pela carga emotiva expressa em diferentes gêneros textuais e também pelos variados recursos linguísticos empregados nas produções. O poema da estudante Maria Fernanda de Mattos Bandeira, turma 3111, ilustra o potencial criativo e literário que a proposta suscitou nesses jovens escritores.


Aqui e Acolá

Aqui neste lado,
pássaros cantam,
o poente dourado
e seus raios me encantam
Aqui neste lado,
a flora é tão verde,
observo calado
a beleza presente

Aqui neste lado,
o ar é tão puro,
o vento é soprado
e me sinto seguro

Aqui neste lado,
oh, tudo é tão belo!
Que até meu passado,
que foi tão singelo,
em mim impregnado,
deixa de ser flagelo
e eu me sinto perdoado.

Ah, mas lá!

Acolá,
só os fuzis cantam,
o sol deixou de brilhar
e os sons muito espantam

Acolá,
é tudo tão cinza,
é preciso se calar
para preservar a vida

Acolá,
o ar é pesado,
nota-se o vento parar
e o perigo espreita, ali, do seu lado

Acolá,
o mundo é estranho,
vê-se o animal se manifestar.
O ser deixa de ser humano
e deixa o egoísmo triunfar

Ainda me pergunto
quantos anos meu filho terá
quando essa guerra de gente grande
e cabeças pequenas acabar.

Se bem que a maldade, presente na gente,
não permite que exista um lado de cá.

Maria Fernanda

Maria Fernanda de Mattos Bandeira, turma 3111 Fundação Liberato


 

A segunda atividade solicitava a leitura prévia da obra O Diário de Anne Frank e possibilitou o estudo do gênero textual diário íntimo. A proposta pedia a escrita de uma página de diário, em que o autor falasse de sua adolescência, relacionando à sua expressão elementos do famoso diário da menina judia. Muitos estudantes recorreram a uma data específica durante os anos de 2020 e 2021 para simular a escrita de seu diário, período em que o isolamento compulsório fez com que os jovens se sentissem solitários e desamparados, aproximando-os, de alguma maneira, dos sentimentos vividos por Anne Frank. O texto da estudante Sara Letícia Schütz, turma 3112, é capaz de exemplificar a sensibilidade e a delicadeza  despertadas durante este trabalho.


Domingo, 24 de maio de 2020.

Querida Clotilde

Nunca achei que diria isso, mas não aguento mais ficar em casa e não fazer nada. Para você ter uma noção, Clô, tente pensar em algo para matar o tempo, qualquer coisa mesmo. Pensou? Posso te garantir que já o fiz diversas vezes.

Não poder sair de casa é horrível, mas ao menos posso olhar para fora ou dar uma volta de carro. Sabia que a Anne Frank, uma judia da minha idade, vítima do Holocausto, não podia fazer nem isso? Se ela ou qualquer um dos oito judeus que se esconderam no anexo secreto sequer espiassem para fora de uma janela, correriam o risco de serem vistos e delatados aos nazistas.

A coisa que mais gosto de fazer aqui em casa é ler e escrever para você, sabia? Mas não deixe seu ego ficar muito grande, Clô, ou vai virar alguém tremendamente mal-educado. Anne Frank também tinha uma companheira fiel como você, a Kitty. A garota escrevia para Kitty sobre absolutamente tudo: sobre quando se irritava com um dos moradores do anexo, como o Sr. Dussel e a Sra. van Daan; sobre a sua paixão por Peter van Daan; sobre como se sentia incompreendida; ou até mesmo sobre quando tiveram que descascar dez quilos de ervilha.

Kitty era um diário que Anne havia ganhado de presente, mas acredito que também era onde ela podia fugir das atrocidades da Segunda Guerra Mundial e ir para o seu próprio mundo.

Agora entendo melhor a Anne, seus sentimentos e medos, porque também posso senti-los em meu confinamento. Cada dia me apavoro ao ver a quantidade de pessoas que morreram ou estão morrendo em leitos de UTI. Mas no meu caso é uma doença que está causando esse sofrimento e essas mortes. No caso de Anne Frank, foram os próprios humanos…

Isso não é incrivelmente cruel e triste, Clotilde? Que a humanidade possa ser assim tão autodestrutiva? Sim, e isso também me assusta, por isso gosto de me lembrar do que Anne pensava: “Apesar de tudo, eu acredito que as pessoas são realmente boas de coração”. Isso, Clotilde, é uma coisa na qual vale a pena acreditar e lutar para que seja verdade.

Sua Odessa

Sara

Sara Letícia Schütz, turma 3112. Fundação Liberato


 

Já sabemos que a leitura e a escrita são ferramentas essenciais para nossa expressão. Também não é novidade o fato de a leitura sensibilizar o espírito, fazendo com que possamos ressignificar o mundo e nós mesmos. O resultado de dois trabalhos como esses, porém, mostra algo diferente: ainda há tempo para despertar em nossos jovens estudantes a esperança de um futuro de paz. E mostra, também, o poder que a palavra tem de transformar a dor e o sofrimento em lições importantes para a vida.

 Íris Vitória Pires Lisboa Professora de Língua Portuguesa e Literatura Fundação Liberato


Íris Vitória Pires Lisboa
Professora de Língua Portuguesa e Literatura
Fundação Liberato

 

[1] SCLIAR, Moacyr. O sol de Amsterdam. In: ______. A poesia das coisas simples. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. p. 89-91.

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