Os movimentos literários e artísticos acompanham a evolução humana em suas revoluções culturais, políticas e sociais. Assim, da simples narrativa oral, inventamos a escrita e, depois, todas as ferramentas, suportes tecnológicos e parafernálias para agradar, ou não, a “gregos e troianos”. Desde os mais tiranos e conservadores até os grandes pioneiros e líderes revolucionários, nas mais diferentes áreas do conhecimento, o homem, e a mulher também, vem transformando a história da humanidade, provocando guerras ou empunhando bandeiras pela justiça em busca da paz. Porém, se no passado as perspectivas de mudança eram questões sociais de extrema importância, a globalização, com suas raízes profundas, entranhadas no descompasso entre o social e o temporal, deslocando o espaço geográfico, veio nos presentear com o que Fukuyama intitulou “O Fim da História”. Porém, “a vida não para” e, assim, da modernidade fomos transportados à próxima estação: a da pós-modernidade. Com ela, parece que, realmente, chegamos à parada final, como previsto pelo filósofo nipo-estadunidense: a derradeira estação em que tudo é possível. Valores culturais e morais se entrelaçaram de forma a reinventar o já descoberto, cobrindo-o com uma roupagem barroca ultramoderna, “underground”. Tudo pode, vale tudo! Mas se tudo pode, o que virá depois? Entre o sonho e a realidade, a utopia e a distopia, o que nos aguarda no “bailar da curva”? Enfim, qual será o destino de nossa próxima viagem? Veja o que dizem Paula Vaz de Almeida e Ekaterina Vólkova Américo em um ensaio, intitulado “A utopia de Aleksandr Bogdánov: um antídoto a nosso tempo – Prefácio de Estrela vermelha”[2]:
Chegamos a um ponto da história humana, neste século que já caminha para a terceira década, em que as utopias parecem ter perdido seu lugar. Basta ver o número de criações artísticas que versam sobre nosso fim: são livros, filmes, séries televisivas, peças de teatro etc. que ganharam fama em um gênero denominado “distopia” (ou “antiutopia”). É possível que um suposto marciano, se olhasse hoje a Terra, perguntasse o que os terráqueos estão querendo dizer de si próprios com tal produção cultural. Parece que passamos a acreditar mais na extinção de nossa espécie que na transformação radical da organização da vida na Terra; ou, ainda, no abandono de nosso mundo, como sugerem projetos de escapismo extraterreno de colonização de outros planetas, especialmente Marte. A facilidade – e, por vezes, até o entusiasmo – com que se aceitam as narrativas de fim do mundo é diretamente proporcional ao ceticismo com que se rejeitam as ideias de um mundo igualitário e justo.”
Em 2005, no Fórum Social Mundial, em Porto Alegre, Eduardo Galeano envolveu-se em um acirrado debate com José Saramago. Para aquele, a utopia significava a própria explicação da existência humana; para este, a palavra utopia deveria ser banida dos dicionários e, em seu lugar, deveríamos justificar a existência através da palavra “necessidade”. O certo é que entre utopia e necessidade há a sobrevivência. Então, será mesmo que não sonhamos mais? Se não sonhamos, como sobrevivemos? Se sonhamos, o que sonhamos? O mundo como ele é – o 1% mais rico do globo embolsa o dobro da renda de 6,9 bilhões de pessoas (a população mundial é de 7,7 bilhões)[3] –, desumanizado e robotizado, como preconiza a “revolução 4.0” ou um futuro com projeções pretéritas, em que economia e ecologia trilharão o caminho da sustentabilidade para a preservação do planeta?
E as artes, a literatura, a cultura, enfim, que papel desempenham na evolução – ou seria involução? – humana? Entre o sonho e a fome, onde se situa o papel abstracionista da arte? Se paramos de sonhar, não deixamos de produzir nem de consumir. Estaríamos, então, objetificados? Se a história acabou, nós ainda estamos aqui. Entre epicuristas e estoicos, o deus Cronos parece nos impor o tempo presente: “viver é melhor que sonhar (…) há perigo na esquina (…) e o sinal está fechado para nós que somos jovens”. O que fazer, então? Aguardar, alienados, o sinal verde que nunca acende? Ficar onde se está até a chegada do “juízo final”? Parece que nos encurralamos em um “cul-de-sac” e que entre nossos sonhos e necessidades, materiais e imateriais, impôs-se um tempo distópico, caótico e, demasiadamente, hollywoodiano.
Todavia, mais uma vez a história contrapõe-se à vã filosofia e se impõe com o advento da pandemia por COVID-19, que trouxe consigo um novo elemento, um visitante invisível que é, ao mesmo tempo, aterrorizante e portador, quiçá, de uma possível nova utopia. Ele parou o mundo e nos pôs a refletir sobre o futuro, sobre o que virá depois, enfim, sobre qual será o “novo normal”. Parece que o eterno embate ocidental entre o bem e o mal, entre a utopia e a necessidade, entre o complexo dilema shakespeariano, “ser ou não ser” e suas variações mais modernas: o “estar ou não estar”, ou, até mesmo, pós-modernas: o “parecer ou não parecer” foram colocadas todas, de uma só vez, em suspenso. O que leremos no futuro, clássicos ou bestsellers? Leremos? Os filmes que reinventaram o Apocalipse Now estarão ameaçados pelo coronavírus? Ou será o Sars-Cov-2 o nosso próximo “sci-fi” a nos relançar, como em Star Wars, ao universo sideral em busca de respostas para um futuro que, jamais, virá? A alternativa, como na teoria do eterno retorno, será nos voltarmos ao que já fomos e nos reinventarmos a um outro futuro possível ou estará a humanidade, capturada pelo “ponto de não retorno”, fadada a um reencontro inevitável com o “void” original?
Quem viver verá!
[2] Disponível em: http://www.patrialatina.com.br/a-utopia-de-aleksandr-bogdanov-um-antidoto-a-nosso-tempo-prefacio-de-estrela-vermelha/?fbclid=IwAR1qqJBK-YFLgkEJ2piotrG6GL_9FxhNwtLMJ6FMqdTGwUfupimeOzJSb-4. Acesso em: 19/08/2020.
[3] Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/economia/concentracao-de-renda-mostra-brasilianizacao-do-mundo/#:~:text=Com%20a%20concentra%C3%A7%C3%A3o%20de%20renda,de%207%2C7%20bilh%C3%B5es). Acesso em: 19/08/2020.