BRASIL: 200 ANOS DE INDEPENDÊNCIA

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O Seminário da Área de Ciências Humanas de 2022, realizado de forma virtual na plataforma Google Meet, com transmissão pelo YouTube, teve como tema “Brasil: 200 anos de independência”. Discutindo temas relevantes sobre nosso país, as palestras proporcionaram aos participantes a reflexão sobre aspectos da nossa história, trajetória e rumos futuros.

O encontro de 29 de junho contou com a participação da professora Maria do Carmo Moreira Aguilar (MCMA), doutora em História Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, e teve como tema a participação da população negra no processo de Independência do Brasil. Maria do Carmo destacou a importância de resgatar o papel e a atuação negra nesse movimento, que marca o surgimento do Brasil como estado nacional moderno, posto que, na historiografia tradicional, essa participação encontra-se apagada. O silenciamento e apagamento histórico são facetas do racismo que é responsável pela elaboração da história única do Brasil, onde a população negra, quando representada, aparece como expectadora e passiva.

A seguir, reproduzimos duas das questões que foram respondidas no debate que seguiu-se à explanação da pesquisadora:

Parece que movimentos que são contra o movimeno negro, contra as suas reivindicações, invocam um nacionalismo que desfaz a importância de dizer quem é o negro no Brasil e o que está sendo reivindicado. Nesse sentido, qual a importância, ante tais movimentos, de nomearmos quem são os negros no Brasil, de dizermos quem é quem?

MCMA: A questão tem muito a ver com o mito da democracia racial. Quando as pessoas levantam a bandeira do nacionalismo, vejo relação com esse mito que mata negros e indígenas, uma vez que transforma a todos em mestiços. A importância de dizer quem é quem, além de fazer uma justiça histórica, ao recolocar esses sujeitos como protagonistas da história do Brasil, tem relação também com a construção de identidade positiva em nossas crianças e adolescentes. Isso é fundamental e tem relação com reparação moral também. Se pegarmos o planalto do RS, a comunidade remanescente de quilombo que pesquisei em minha dissertação, por exemplo, é uma comunidade que existe desde o século XIX na região de Cruz Alta. Mas quando vamos para a história da região que é contada nos sites das prefeituras, está lá que a região foi colonizada por imigrantes europeus, italianos e portugueses e “três pontinhos”. Quando vemos esses “três pontinhos”, logo pensamos que são negros e indígenas. O fato é que há um território negro naquela região desde o século XIX que é silenciado na história, e isso impacta na construção da identidade das crianças quilombolas. Então, quando fazemos uma pesquisa e vamos para a comunidade, e essa comunidade pega a nossa pesquisa, dissertação e tese, e sai pela região divulgando, mostrando “Está aqui no livro, eu também fiz parte da construção dessa história, dessa região”, tensiona-se o poder público e mostra-se para todos que aquela comunidade também é importante. Ao reivindicar esse lugar na história da região, esse reconhecimento, aquelas populações reivindicam políticas reparatórias. Trazer essa história do negro e apontar quem é quem é muito importante para essa construção identitária positiva na sociedade brasileira.

Em sua fala, a senhora comentou que antigamente a participação da população negra na história brasileira não havia sido documentada, ou não tinha reconhecida sua importância. Em sua opinião, o que se pode esperar da historiografia atual e futura com relação ao reconhecimento da participação dos negros na construção da história do Brasil? O que é feito hoje para evitar o apagamento dos negros na história?

MCMA: A tomada de protagonismo pelo negro – afirmo que é uma tomada porque esse papel não nos foi dado, não foi dado à população negra – ocorreu por meio da democratização do acesso à universidade, a partir da qual esse público vem realizando suas pesquisas. Se hoje conhecemos um pouco mais sobre a história da população negra, é porque o olhar para essa história mudou, porque nós temos uma diversidade maior de pessoas ocupando esses lugares nas universidades. Quanto maior a diversidade, mais plurais serão essas histórias.

Vejo os estudos da população negra de forma muito otimista. Cada vez mais têm entrado nas universidade jovens negros e negras e jovens de periferias, então vejo com muito otimismo o avançar dessas pesquisas. Inclusive a Ana Flávia Magalhães Pinto, que é uma professora da UNB, pesquisa experiências de liberdade no Brasil escravista, no século XIX. É interessante que, num século no qual quase todas as pesquisas são sobre o sujeito escravizado e onde muitas delas sequer reconhecem esse sujeito como sujeito, a Ana Flávia e algumas historiadoras do Rio de Janeiro estão indo na contramão, mostrando experiências de liberdade no século XIX, mostrando a atuação de políticos e intelectuais negros nesse século. Vejam quanto estamos avançando. Então, sou muito otimista em relação a essas pesquisas. Penso que o grande desafio é descobrir como transcender os muros da academia e fazer essas pesquisas se tornarem públicas.

Nosso papel enquanto historiador e historiadora é o de trazer essas pesquisas, de trazer para cena esses sujeitos que protagonizaram a história do país. No meu caso, por exemplo, minha pesquisa, minha tese foi publicada. A nossa parte estamos fazendo, essa nova historiografia da população negra está fazendo: pesquisar, trazer esses sujeitos para dentro da história, mostrar esses sujeitos como protagonistas, como parte importante da história do país. Nós estamos trazendo. Agora quanto à questão do apagamento, acho que deve ser um compromisso de toda a sociedade não deixar que isso aconteça. Não é só o historiador, mas a sociedade como um todo que deve estar comprometida com esse objetivo.

Profa. Maria do Carmo Moreira Aguilar

Profa. Maria do Carmo Moreira Aguilar

O encontro do dia 6 de julho contou com a participação do professor do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História da UFRGS, César Augusto Barcellos Guazzelli (CABG), que abordou os processos de libertação da América portuguesa e espanhola de suas metrópoles europeias. Em sua fala, o historiador destacou a importância de retomarmos as independências com um olhar que ultrapasse as fronteiras nacionais que hoje conhecemos. Ver além dos Estados nacionais atuais permite-nos reconhecer os projetos políticos malogrados no embate estabelecido nas primeiras décadas do século XIX e as alternativas de futuros passados que continuam a ecoar.

Quando olhamos a história de como se formaram os Estados na América Latina e o que é produzido sobre ela nos EUA e na Europa, fica marcada a distinção em relação à História do Brasil por um tom muito generalista do que é a América Latina. Como se Argentina, Brasil, Colômbia, Bolívia fossem um grande aglomerado. Porém, quando olhamos para a produção brasileira, tem-se a impressão de que o Brasil não é latino-americano. O professor também tem essa percepção? Qual seria sua origem?

CABG: Em primeiro lugar, eu não gosto de usar o termo “latino-americano”. Quando comecei a lecionar, era professor de História da América, o que depois se tornou História da América Latina. Temos também a História dos Estados Unidos, da qual sou professor. Mas acho que nós somos sim americanos. Passamos por processos que são resultado de uma colonização, e isso aconteceu não somente conosco. Óbvio que um cearense fala de maneira diferente de um rio-grandense. Não gosto de usar a palavra gaúcho, já que rio-grandense não é necessariamente gaúcho, isso foi inventado depois.

Num país como a Noruega, por exemplo, que tem cerca de oito milhões de habitantes, a capital Oslo teria por volta de 800 mil. Outra cidade, chamada Bergen, tem uns 270 mil, depois existem cidades muito pequenas. Nesse país, com cidades que não são tão grandes, se é capaz de distinguir sotaques de bairros de Oslo. Consumo muita literatura policial. É algo de que gosto muito, e temos uma série de romances policiais produzidos nos países escandinavos. Acabei sabendo disso: existem sotaques num país como a Noruega com tão pouca gente. Para não falar na Itália, onde nós temos um sotaque, como o napolitano, do qual não se entende nada. Eles não falam italiano. O idioma era falado, quando se construiu a Itália, por 4% de pessoas. O restante falava outras línguas. Os nossos chamados italianos, na verdade, falam vêneto. Escrevem em vêneto que são italianos: ao invés de io sono italiano, escrevem mi son talian; ou seja, dizem num dialeto local que pertencem a uma unidade nacional. A Espanha tem quatro idiomas e uma infinidade de dialetos. Lá se fala o que se chamava castelhano e hoje se chama espanhol, fala-se catalão, fala-se basco e também o gallego. Quando encontrei gallegos na Argentina, achei que eles estavam falando português, porque é algo muito misturado.

Agora, como se consegue unificar e criar uma língua italiana? E uma língua inglesa ou francesa mesmo com todos os seus dialetos? Especialmente no caso da América, em que nós não temos propriamente dialetos, mas gírias, jargões, etc. Consigo ir para Manaus e me entender com um manauara sem precisar de um dicionário. Alguém de Nova Iorque poder ir para Atlanta e conseguir falar com os sulistas sem problemas propriamente de entendimento. Ele pode ser identificado como alguém sulista ou nortista, como nós fazemos aqui. Na Argentina, também há uma série de sotaques. Eu sei reconhecer um sotaque cordobês, pois morei muito tempo na Argentina, ou um sotaque correntino, ou o sotaque que só Buenos Aires tem. Mas todos falam a mesma língua. Agora, por quê? Porque alguém mandou todos falarem a mesma língua. Alguém disse que aquela língua de origem pertencia a todos. E como isso é feito? Pela escola.

Minha questão tem relação com a criação dos Estados nacionais e os seus mitos. No Ensino Fundamental, aprendemos que a cultura gaúcha é a apropriação de elementos dos nossos vizinhos espanhóis. A impressão que se tem é que os mitos e os elementos culturais foram produzidos por alguém que conduzia um plano: fazer com que uma população acredite que faz parte de um país. Como isso acontece na realidade? É um projeto ou algo que acontece de maneira natural?

CABG: E como se faz um país? Um país se faz com os interessados reunidos em torno de uma mesa, que decidem:  “Vamos fazer um país!” Mas o que se precisa para fazer um país? Ter uma literatura própria, por exemplo. Como tem que ser esta literatura? No caso da Itália, não seria a literatura napolitana, mas a da burguesia do norte do país que considerava fazê-la em alto nível, aos moldes da sua língua. Além disso, vamos criar um passado, fazendo com que sua descendência remontasse à Roma. Ou seja, as genealogias são também mitos de origem, mitos de criação. Nós, brasileiros, temos duas famílias pretensamente imperiais! De uma delas, um dos autoproclamados herdeiros de uma monarquia inexistente elegeu-se deputado usando o título “Don” e   assinando “Imperador do Brasil”. Na verdade, esse ramo da “realeza” herdou uma fazenda do D. Pedro II e ganhou, por causa da ocupação que a cidade de Petrópolis fez dessa propriedade, a bela vida de viver de graça, em um palácio, além de receber um laudêmio – uma espécie de taxa – de 2,5% de todas as transações imobiliárias locais!  E ainda se proclamam “imperadores”! Mas tem outro ramo da família, da cidade de Vassouras, que não aceita que os de Petrópolis sejam “imperiais”, porque eles seriam descendentes do legítimo herdeiro do trono inexistente da princesa Isabel, corrida do Brasil quando da proclamação da República. Mas isso é uma invenção, uma dinastia é uma invenção. Por isso se inventa um país – literalmente cria-se ele – e se decide, por exemplo, “agora a língua é o francês”, “só vai se falar francês”, “em toda a economia vamos usar o sistema métrico” e isso será difundido pela escola etc. Não por bondade dessas pessoas, mas para favorecer os seus negócios. Quer-se que todos falem a mesma língua para fazer negócios! A história em quadrinhos foi inventada nos Estados Unidos para que os poloneses que não sabiam falar inglês – ou tinham muita dificuldade para isso –  soubessem como andar em uma fábrica, circular por espaços e entender sinais gráficos. Inventam-se músicas. Havia um Império Austro-Húngaro e, como se viesse do nada, inventou-se uma música húngara: nela destacou-se  um grande compositor e virtuose chamado Liszt, que se intitulou húngaro, pois nascera nessa parte do império. Então, ele fazia parte de uma cultura húngara. Apareceu uma literatura da mesma forma, e os romances, que foram fundamentais. Especialmente na fase romântica da literatura, eles estavam buscando justamente uma raiz nacional. O primeiro grande romance histórico foi Ivanhoe, de Walter Scott, onde, a partir de normandos e saxões que eram inimigos mortais, pois os primeiros dominavam os segundos -, conseguiu-se criar uma relação de união através do rei Ricardo, Coração de Leão, que era normando, mas soube conviver bem com os saxões. Portanto aí está a origem da Inglaterra. Isso foi inventado. Walter Scott escreveu assim porque ele quis. Alexandre Herculano escreveu a história de Portugal porque era ao mesmo tempo historiador e literato e porque queria passar a ideia de uma Portugal poderosa, valente, herdeira das melhores tradições, não só ibéricas, como também árabes. Portugal existe, na visão de Herculano, porque eles combateram os árabes e também os espanhóis, e existe porque os portugueses eram guerreiros, descobridores, etc. Camões fará a mesma coisa em Lusíadas: “nós, portugueses, somos melhores”. Assim se está criando uma imagem e a espalhando.

A Anne-Marie Thiesse, uma historiadora francesa, acompanhou o processo de invenção de um país. Os franceses do sul, da área do Languedoc, eram pobres que dependiam da burguesia parisiense, pela qual passavam todos os seus negócios. Quando houve a formação da Comunidade Europeia, eles se associaram a pessoas do norte da Itália e à Catalunha, a região mais rica da Espanha, e resolveram criar um país, já que não queriam ser nem italianos, nem franceses, nem espanhóis. Então, buscaram uma raiz celta, encontrando algumas pessoas que falavam dialetos oriundos do celta e um prato da mesma culinária, assim como uma versão da gaita de fole típica. Depois de um tempo, eles estavam escrevendo e ensinando um idioma celta. Como os antigos celtas foram para as ilhas britânicas, foram para a Península Ibérica, eles vieram para a América; logo, os celtas eram os dominadores do mundo. Vamos todos falar celta. Ou seja, eles queriam criar uma nação! Então, sim, os países são inventados. As escolas e outras tantas instituições ensinam a falar a mesma língua. E é a escolarização que traz a História, traz o herói, traz o antepassado. Portanto, a História é fundamental também na formação dessas invenções de nação.

Deise Gabriela Bays, Hildete Flores Rodrigues, Juliano Francesco Antoniolli, Raquel Vieira Sebastiani e Vilson Schutz
Professores da Fundação Liberato e integrantes da Comissão Organizadora do Seminário

 

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