Leitura crítica e reflexiva no mundo digitalizado: um desafio necessário

Cerebro-maior

A leitura profunda sempre tem a ver com conexãoconectar aquilo que sabemos com aquilo que lemos, aquilo que lemos com aquilo que sentimos, aquilo que sentimos com aquilo que pensamos, e o modo como pensamos com o modo como vivemos  nossas vidas, num mundo conectado. (WOLF, 2019, p. 188).

Há muito se discutem os efeitos do excesso de tempo gasto nas telas para os processos cognitivos de nossos jovens. A perspectiva de que um comportamento que aponte para um descontrole sobre o uso do celular possa prejudicar a concentração, a assimilação das informações e a reflexão sobre o que é consumido assusta e deve acionar o sinal de alerta para pais e professores.

A suspeita de que algo poderá não terminar bem para a aprendizagem ‒ se cada vez mais os jogos, redes sociais e demais aplicativos ocuparem os espaços necessários à leitura e à reflexão ‒ é confirmada pelas recentes pesquisas da neurocientista norte-americana Maryanne Wolf, divulgadas, em parte, na obra O cérebro do mundo digital: os desafios da leitura na nossa era (2019).

Todo professor que entenda a leitura como uma importante fonte de conhecimento, em especial o de língua materna, em algum momento de sua rotina em sala de aula, já fez alguns destes questionamentos: por que os estudantes estão tão resistentes à leitura dos clássicos? Por que leem e não parecem entender o que leram? Os estudantes estão deixando de ler livros por causa do celular? O comportamento leitor na tela é o mesmo diante do livro impresso? Em termos de cognição, o que se ganha e o que se perde com o uso das mídias digitais? Sem a pretensão de dar conta de todos os vieses contemplados na recente pesquisa, destacam-se alguns pontos importantes da análise da autora.

Inicialmente deve-se diferenciar o comportamento leitor no texto impresso e no texto em tela. Durante a leitura digital, atingimos uma velocidade acelerada de informações, que altera o modo como consolidamos a memória, pois contamos com formas externas de armazenamento, mais facilmente acessíveis com um simples toque na tela: para que se retome um dado, basta que se volte à aba anterior. Essa facilidade, tão vantajosa na contemporaneidade, acaba por obscurecer a beleza que um olhar mais calmo sobre o mundo pode revelar, assim como reduz o tempo necessário de desenvolvimento de fundamentos interiores de conhecimento, responsáveis por nos fazer saber ler e lembrar. 

Isso talvez explique a dificuldade de compreender aquilo que é lido: a leitura é superficial, tem como objetivo a distração ou o simples cumprimento de uma tarefa e não promove o pensamento crítico. Lemos mais, hoje, exatamente em razão do universo digital, mas é uma leitura interrompida por diversos estímulos, sem continuidade, constância e concentração, processos importantes para a verdadeira compreensão. Claro que quanto mais informação melhor, mas há uma questão crucial no processamento dessa informação: é preciso tempo para processar o que percebemos e o que lemos e o mundo digital é acelerado e repleto de distrações.

Um exemplo de como o tempo de leitura fora do mundo digital tem sido prejudicado é a resistência de boa parte dos alunos quanto às obras clássicas. Professores de Literatura frequentemente queixam-se da dificuldade na leitura dessas obras, deslocadas no tempo e no espaço se considerado o contexto dos adolescentes; sem falar do distanciamento do estilo e da linguagem em relação aos best seller do momento. Ao se tornarem impacientes com o tempo exigido para compreender textos mais densos, os jovens leitores não chegam a aprimorar a garra e a paciência cognitiva necessárias para o pensamento crítico e analítico, o que inviabiliza o reconhecimento da beleza de textos representativos da cultura literária universal.

Maryanne Wolf é direta em suas percepções e objetiva quanto aos resultados de suas pesquisas, mas não é pessimista quanto ao futuro da leitura no mundo digital. Para a pesquisadora, há como ganhar tanto com o livro impresso quanto com o universo digital. A solução para o impasse pode estar no desenvolvimento de um  trabalho conduzido e sistemático de leitura; no trabalho com diferentes letramentos a fim de mostrar as várias possibilidades de uso da linguagem e sua adequação às variadas situações comunicativas; e no desenvolvimento de atividades que apontem para um crescimento pessoal e social do leitor, com o reconhecimento de valores como empatia, senso de justiça e desejo de uma sociedade verdadeiramente democrática.

Ao relatar um de seus experimentos, a pesquisadora comenta que, quando se transfere o modo de leitura em tela para a leitura impressa, algo se perde: a releitura, a retomada de ideias, a possibilidade de se refazer o trajeto do autor em seu texto. Não há, porém, como abandonarmos a leitura em tela. 

Na tentativa de sugerir novos rumos para o trabalho de leitura profunda e crítica, Wolf narra uma pequena história indígena:

[…] Nessa história, um avô fala a seu jovem neto sobre a vida. Ele diz ao menininho que em cada pessoa vivem dois lobos, que estão sempre em guerra entre si. O primeiro lobo é muito agressivo e cheio de violência e ódio para com o mundo. O segundo é pacífico e cheio de luz e amor. O menino pergunta angustiado ao avô: “Qual dos dois ganha?” O avô responde: “Aquele que você alimenta” (WOLF, 2019, p. 119). 

Longe de propor a analogia entre leitura impressa/ leitura digital e mal/bem, a narrativa indígena pode lançar luz à ideia de que é possível pensar novas metodologias para que o segundo lobo esteja sempre presente e forte nas rotinas de leitura nas escolas, despertando nos jovens leitores o prazer que só um mergulho lento e profundo em uma boa história proporciona.

[1] WOLF, Maryanne. O cérebro no mundo digital: os desafios da leitura na nossa era. São Paulo: Contexto, 2019. p. 188.

Íris Vitória Pires Lisboa Professora de Língua Portuguesa e Literatura Fundação Liberato

Íris Vitória Pires Lisboa
Professora de Língua Portuguesa e Literatura
Fundação Liberato

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