A oração de Mercedes

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André Viegas
Professor do Curso Técnico de Química
Fundação Liberato

Solo le pido a Diós é uma fabulosa prece em forma de música, composta por León Gieco e eternizada na voz de Mercedes Sosa, La Negra. Às vezes ouço o reverberar de seus versos.

Que a dor não me seja indiferente… Que o cotidiano não me anestesie frente ao sofrimento alheio – não só dos meus, da minha família. Há a dor daqueles que perderam a dignidade por conta de alguma crise, dessas que a poucos enriquecem, às custas de muitos. Há a dor daqueles que sequer conheceram a dignidade, a quem a condição declarada de seres humanos não contemplou. A dureza da perspectiva daquele que dorme e acorda com fome. Ou de quem perdeu a saúde e luta pela vida. Sem qualquer ilusão de que poderei mudar a tudo isso, que a indiferença não banalize aquilo que machuca.

Que a guerra não me seja indiferente… esse monstro grande, que pisa forte e estraçalha a inocência da gente! A inocência, essa bela, realimentada e distribuída no mundo, especialmente pelas crianças – esses seres ativos, criativos, arteiros e capazes de imaginar mundos mais doces e coloridos do que o nosso. A inocência de uma confraternização, de uma caminhada, de uma música ou um livro qualquer, de um simples bate-papo. A inocência de sentir-se em paz. Guerras despedaçam famílias, instituições, nações. Surrupiam nossas esperanças, consomem recursos que poderiam ser usados para resolver nossas mazelas. Minam nossas mentes com o medo. Seja a guerra declarada, seja a guerra cotidiana das agressões e barbáries que inundam os noticiários.

Que o engano não me seja indiferente. Se um traidor pode mais do que muitos, que esses muitos não esqueçam facilmente. Que não me esqueça da fila que foi furada, daquele esperto que tirou de alguém a vez que lhe cabia, daquele tipo que pensa que o mundo pertence mais a si do que aos outros. Não esquecer, especialmente, para mudar meu próprio rumo quando estiver me tornando um desses.

Que o futuro não me seja indiferente, que não seja obrigado a ir para outro lugar, a viver uma cultura diferente. Cantam bonito os pássaros daqui. O pôr do sol assume belezas únicas neste lugar ao qual pertenço. As ruas e calçadas que me viram nascer, crescer e agora me veem amadurecer. Um porto, uma laranjeira, um morro de pedras – paisagem que em mim permanecerá. Que sair daqui seja sempre uma escolha, nunca uma imposição. Que possa seguir em frente sem ser indiferente às minhas raízes, ao banco da praça, aos livros da biblioteca pública. À língua materna. Aos amigos de longa data!

É sobre a luta contra minha própria indiferença. Eis a força da oração, diferente de tantas outras que ouvi. Não há um pedido de pão, de salvação da alma, ou de algum lugar na terra por alguém prometida. Apenas um ser humano buscando manter viva sua sensibilidade, numa belíssima canção.

E que a morte, ressecada, não me encontre vazio e só, sem ter feito o suficiente!

Mercedes Sosa com León Giego: Sólo Le Pido a Dios: https://youtu.be/Gvyl_zdji2k

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