A vida dentro d’água

agua-maior

Júlia Brandelero Labres
Estudante do Cursto Técnico de Química
Fundação Liberato

[Fala na televisão] “A tempestade é decorrência da passagem de um ciclone extratropical, dizem especialistas. No próximo bloco, indicações da Defesa Civil sobre como se dará o controle da situação” [música comercial].

Raquel baixa os olhos da televisão para sua caneca de café, coloca-a na pia. Apanha a jaqueta, enfia sacolas de plástico na bolsa e para em frente ao quarto da mãe. Dona Cida levanta-se, solta um suspiro quando consegue ficar de pé.

— A senhora me avisa se a água subir. Leva a Maria na escola, lembra de entregar a pipoca que eu comprei, é pra festinha de amanhã – diz Raquel enquanto calça os tênis gastos.

— Claro, filha, vai com Deus – responde dona Cida, colocando a cabeça para fora da porta e observando a filha correr para abrir o portão.

Quando o ônibus para no ponto, a temida chuva começa. Raquel sobe e cumprimenta o motorista. Localiza um banco livre ao lado de uma vizinha.

— Tudo certo, Lena? E essa chuva? Parece que vai ser pesada.

— Sim, guria. Sorte a nossa que o Beto ergueu o terreno, a água nunca chegou a entrar em casa, ainda mais que agora tem o segundo piso… mas teu terreno é mais baixo, né? Tu sabe que se precisar é só dar um grito.

— Tô um pouco preocupada, mas faz anos que o rio não sobe muito…

— Ah, diz isso porque tu tinha ido morar com o Marcão quando teve aquela última chuvarada. Tua mãe quase que perdeu a geladeira, a gente teve que ajudar ela e o teu irmão a tirar tudo de dentro de casa. Dona Cida dizia que não podia mais contar contigo, não queria se envolver com bandido. – Lena ergue as sobrancelhas.

— Ah, Lena, eu fui uma idiota. Não quero nunca mais ver aquele desgraçado. A única coisa boa que o Marcos me deu foi a Maria. – Raquel expira com força.

As duas olham pela janela embaçada e percebem que estão quase em frente à parada. O ônibus para, e as duas mulheres descem. Atravessam a rua correndo, entram pelos fundos da padaria. O dia vai ser puxado, há muitos pães doces, roscas e biscoitos para preparar na maior padaria da cidade.

Enquanto tece as tranças de pão doce, Raquel pensa em como vai fazer para proteger a mãe e a filha. Pensa em mandar as duas para a casa do irmão, Rodrigo. É longe, dona Cida provavelmente vai relutar… mas lá vão estar seguras. Lembra da máquina de lavar, que pagara com tanto esforço. Não podem perder tudo o que conquistaram. Distraída, volta ao presente quando Lena dá um toque em seu braço:

— Raquel, tua vez de ir comer alguma coisa. Vai rápido.

— Lena, não parou de chover um minuto. Se eu precisar, posso levar algumas coisas pra tua casa?

— Claro, guria, mas vamos torcer pra que a situação não chegue a tanto. Vai comer, vai!

Raquel corre para a sua bolsa e pega o telefone para tentar falar com a mãe durante o intervalo. Dona Cida atende:

— Alô, Raquel. Que foi, filha?

— Oi, mãe. A senhora deixou a Maria na escola? Levou a pipoca?

— Raquel, chegamos na escola, e a diretora tava lá avisando que cancelaram as aulas. Falou que a escola vai estar aberta pra quem precisar de abrigo… Mas enquanto der, né? Que da outra vez a água entrou até nas salas de aula.

— Ah… mãe, de noite a gente conversa mais, tá? Consegue colocar a Maria no telefone?

— Vem cá, guriazinha, tua mãe quer falar contigo.

— Oi, mãe! Mãe, eu não tive aula hoje. Não vai ter festa amanhã também. Tudo por causa da chuva… Mas eu ajudei a vovó na cozinha!

— Que bom, meu anjo.

— E montei um quebra-cabeça. Aquele de gatinho que a gente comprou no centro, mãe!

— Que bom, filha… Agora tenho que voltar pro trabalho. Te comporta, ouviu?

— Tá bom, mamãe! Beijo, eu te amo!

— Te amo também, meu bem. Beijo pra ti e pra vó!

Raquel espia o relógio. Dá tempo para ligar para o irmão. Apanha uma broa de milho de um pacote aberto e engole o último pedaço quando ele atende:

— Raquel! Eu não esperava uma ligação tua… tudo bem com vocês?

— Oi, Digo. Tudo bem… mas eu tô preocupada com a chuva. Esse tal de ciclone, o vento e o aguaceiro… Tu sabe que a situação ali na vila é complicada.

— Sim, a gente passou por isso na última vez que a enchente veio forte. Aqui tá chovendo, mas fraquinho. Não imaginava que a situação tava engrossando aí.

— Pois é, mano… eu acho que seria melhor a mãe e a Maria saírem lá de casa, se o pior for acontecer. Elas podem ficar aí contigo?

— Claro, Raquel. É só dizer que horas elas vêm que eu espero no trem. O Tiago foi pro Paraná com o carro, senão eu podia ir aí buscar. Tu vai ficar em casa?

— Sim, sim, não deixo a casa sozinha, é um perigo. Obrigada, Digo, não queria te incomodar.

— Que absurdo, Raquel, incomodar como? A gente ficou tanto tempo afastado. Quero ajudar no que puder.

— Ah, mano, eu sinto muito que não tava lá pra ajudar tu e a mãe quando vocês perderam quase tudo, quando tu saiu de casa, quando ela ficou internada…

— Ah, Raquel, a vida não foi nada fácil pra ti. Conseguimos reconstruir tudo, nos acertamos, e ela tá bem de saúde. Agora a gente tá junto de novo, como família.

— Sim, Digo, como família. Obrigada. Tenho que voltar pro trabalho agora.

— Tchau, tchau.

Raquel volta a trançar os pães, mas o olhar escapa para a janela, para a chuva. No fim do expediente, pega um pacote de pão e um bolo para levar. Amarra nos pés as sacolinhas de plástico que tinha na bolsa, para tentar proteger os tênis.

A chuva e o vento não param nem por um momento, Raquel pensa ao longo de todo o trajeto em como vai arrumar as coisas da filha, em como salvar os móveis… A cabeça até começa a doer. O ônibus não vai fazer o trajeto habitual por conta do alagamento das ruas. Desce longe de casa e corre pela estrada barrenta até alcançar o seu portão. Com as luzes dos postes da rua desligadas, é difícil encontrar as chaves. Dentro de casa, dona Cida já acendeu as velas, é possível ver através da janela. Raquel se apoia na porta para tirar as sacolinhas dos pés. Entra na cozinha fria e úmida. Maria interrompe seu desenho e corre para abraçar a mãe.

— Mãe, mãe, que bom que tu chegou! Eu fiz muitos desenhos, nós fizemos docinhos também. Vovó disse que foi a dona Nena que encomendou. Faltou luz, mas nós conseguimos terminar, foi por pouco.

— Que bom, filha – responde Raquel, abraçando-a.

— Olha, eu trouxe pão e um bolinho. Boa noite, mãe.

— Boa noite, Raquel. Tô passando um café. A água tá subindo, e acho que é melhor nos prepararmos pra arrumar tudo e erguer as coisas até amanhã.

— Mãe, eu falei com o Rodrigo. Pedi pra ele receber a senhora e a Maria. Amanhã vocês pegam o primeiro ônibus, depois o trem. Ele vai esperar na estação.

— Raquel… Tu sabe que agora a gente tá se dando bem, mas acho que não é uma boa ideia. Eu quero ficar na minha casa, cuidar das minhas coisas…

— A senhora não tem mais força pra isso, e a Maria é pequena. Melhor ir, vocês ficam lá até acalmar a situação. Eu cuido de tudo aqui, pedi ajuda pra Lena.

— Parece que tu já resolveu, né? É… melhor levar a Maria mesmo. Mas vou te ajudar a arrumar tudo, filha. Bom poder contar com os vizinhos. – Dona Cida segura as mãos da filha.

— Vai dar tudo certo, Raquel. Juntas a gente vai dar conta.

— Vamos conseguir, mãe, juntas. – Raquel olhou nos olhos da mãe por um segundo.

— E o cafezinho?

As três juntam-se ao redor da mesa iluminada pela luz das velas. Tomam café com pão e bolo. Esquecem da preocupação por alguns minutos. Porém, a tranquilidade é interrompida pelos uivos do vento. Raquel começa a recolher as coisas da mesa. Pega um pires que sustenta uma vela e leva Maria até o banheiro, para escovar os dentes.

— Filha, vamos arrumar as coisas na mochila. Tu e a vó vão pegar o ônibus e o trem pra ir até o tio Rodrigo. Fica sempre junto da vó e não fala com estranhos, tá?

— Tá bom, mamãe.

Raquel leva a filha para arrumar a mochila e depois a coloca para dormir. Dona Cida e a filha começam a guardar roupas e objetos em caixas de papelão e sacolas de plástico. As horas passam, o vento e a chuva continuam do lado de fora. As duas terminam de erguer os últimos móveis.

— Eu vou descansar um pouco, logo vamos sair – diz dona Cida.

— Tá bom, mãe, vou tomar mais um café. Ainda bem que amanhã é sábado, não vou trabalhar. Vou levar as coisas pra casa da Lena assim que amanhecer.

Raquel fica sozinha na cozinha, iluminada pela luz de uma vela. Bebe um gole de café, vai até a janela e observa a chuva, cada vez mais torrencial. Pensar que uma tempestade pode ser tão intensa, que enchentes são tão repentinas… que ela e tantos vizinhos, em poucas horas, serão obrigados a deixar suas casas, seus pertences, suas conquistas. É difícil aceitar tantas perdas, impostas dessa forma. O melhor é manter a calma, tentar salvar o que der. Ela lembra da frase que a mãe sempre repetia ao sair para trabalhar: “Rezo pra ter saúde e paz, pois do resto a gente corre atrás.”

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