A CRÔNICA E A INTERTEXTUALIDADE: O CASAMENTO PERFEITO

inter1

Íris Vitória Pires Lisboa
Professora de Língua Portuguesa e Literatura Brasileira
Fundação Liberato

Por entender que a intertextualidade é um elemento intrínseco ao ato de ler e escrever, proponho, em muitas atividades de produção textual, que os estudantes resgatem textos que marcaram de alguma forma a sua trajetória escolar e seu processo de formação na infância. Os contos de fadas estão constantemente presentes nesse momento e possibilitam experiências muito interessantes no processo criativo.

A atividade a qual faço referência neste relato propunha que os alunos criassem crônicas a partir de narrativas populares, como os contos de fadas. O primeiro passo foi ler com as turmas a crônica Cinderela, o Príncipe e o final feliz1, de Rubem Penz, na qual o foco recai sobre o príncipe, alguém apaixonado por sapatos, que repete a saga em busca de sua princesa, ou melhor, do pé do célebre sapatinho de cristal para, assim, completar o par de seu mais novo desejo de consumo.

Acredito que a temática do cronista e seu engenho em atualizar a tradicional narrativa, contemplando, intencionalmente ou não, as discussões de gênero, foram um estímulo para os estudantes das primeiras séries do Curso de Mecânica e das turmas 4111 e 4112 pensarem as histórias ouvidas na infância de modo criativo e livre de preconceitos.

Se a literatura por si só já é responsável por abrir a mente dos jovens para novas experiências, conhecendo novas narrativas de vida que os farão respeitar a diversidade, a crônica, este gênero textual fluido e versátil, vai além: ela apresenta elementos da contemporaneidade que merecem nossa reflexão, permitindo que princesas, príncipes, madrastas e sapos possam ganhar novos significados em nosso tempo. Os textos que acompanham este sucinto relato são uma amostra disso. Boa leitura!

1. PENZ, Rubem. Enquanto tempo. Porto Alegre: BesouroBox, 2013.


Branca de Neve e Pretinha de Noite

Manuela Reis dos Santos
Estudante do Curso Técnico de Mecânica
Fundação Liberato

Era uma vez Branca de Neve, uma adolescente linda que vivia na floresta e amava os animaizinhos de lá (provavelmente era dona de um caramelo chamado Mel). Certo dia da sua vida de hippie, aproveitando o que a natureza lhe oferece, encontra uma casinha bem humilde no meio do mato e tem a ótima ideia de invadi-la (como se suas ações não tivessem consequências!).

Entrando no muquifo, e aquilo estava uma verdadeira imundície, Branca resolveu fazer uma faxina (pra ter noção do que o tédio é capaz de fazer com alguém!).

Enquanto isso, em algum lugar não muito distante dali, uma mulher desocupada e insegura ‒ provavelmente por causa do padrão de beleza imposto pela sociedade – perguntava ao seu espelho se ela era a moça mais bonita do reino. No momento em que recebeu uma resposta negativa, foi em busca da mulher mais linda que ela para ter uma conversinha civilizada.

No final do dia, os donos da casinha chegaram e encontraram Branca de Neve dormindo nas suas camas (literalmente NAS suas camas, porque ela teve de juntar várias já que eles eram anões). Ela teve muita sorte: eles tinham um bom coração e a deixaram ficar. Quem sabe eles poderiam ter outras intenções, né? O problema é que a Branca realmente era meio desprovida de inteligência e, na manhã seguinte, aceitou frutas de uma senhorinha com uns papo meio estranho. Logo após isso, resolveu se deliciar mais uma vez com as coisas da “natureza”. Entre aspas, porque, na verdade, esse era o plano daquela mulher para se livrar de Branca, a mais nova Miss Reino. E ela caiu direitinho. Ficou lá desmaiada o dia inteiro.

Até que um tal príncipe que passava por lá a viu desmaiada e decidiu assediá-la: começou a beijá-la sem parar. Outra hippie, porém, que vivia na região, viu aquela cena e sabia que tinha algo errado ali… Foi logo tacando uma pedra naquele lheguelhé2 e percebeu a bela menina acordando.

Branca viu uma pretinha maravilhosa de linda na sua frente e se apaixonou na hora. Preta de Noite e Branca de Neve foram “felizes para sempre” (se é que isso existe), cuidando dos mini-homens.

2. O mesmo que “João-Ninguém”, alguém sem importância.


Branca de Neve, a Rainha Má(luca) e o bêbado

Rafael da Silva Rosa
Estudante do Curso Técnico de Eletrônica
Fundação Liberato

Era uma vez uma garota jovem, menor de idade, que era tão branca, mas tão branca, que a chamavam de Branca de Neve, sim, como a daquele conto de fadas. A mãe morreu assim que a menina nasceu, e toda essa história começou quando seu pai casou-se com a segunda mulher mais linda do mundo, perdendo apenas para Branca, o que causava inveja na madrasta.

Na verdade, elas não eram as mais bonitas do mundo: Branca tinha uma beleza comum, e a mulher era feia que dói. Mas, então, quem dizia isso a elas? O pai de Branca? Não! Era a própria madrasta. E quem falava isso para ela? O espelho dela. Mas espelho fala? Lógico que não, essa doida devia ter problemas.

Branca fugiu de casa com medo da Rainha Má (sua madrasta). Ela entrou na floresta e se deparou com uma casa pequena, com cama pequena, tudo pequeno. E, por causa do cansaço, Branca deitou-se na cama e capotou.

E daí? Os anões chegam? Lógico que não, isso não é um conto de fadas. Era apenas uma casinha de mentira, que um carpinteiro estava fazendo para sua filha brincar.

Depois de alguns dias, a Rainha Má achou Branca e, disfarçada, deu-lhe uma maçã envenenada. Como a menina estava com fome, comeu a maçã e foi dessa pra melhor, que burra! Não se deve aceitar comida de “estranhos”. Depois de um tempo, descobriram que fora a madrasta quem a tinha envenenado e ela foi em cana.
O velório foi na floresta, lugar favorito de Branca. Até que chegou um príncipe e disse que ia salva-lá. Ele foi até o cadáver e beijou seus mortos lábios.

Ela voltou à vida? Lógico que não! Como esse bêbado, que chegou todo torto e beijou uma adolescente morta, iria salvar alguém? Esse daí ouviu demais o conto da Branca de Neve.


Sobre Webnamorados

Franthieska Maicá Aguirre
Estudante do Curso Técnico de Mecânica
Fundação Liberato

Rapunzel, uma bela moça de longos cabelos loiros, coração puro e corpo intocado, vivia encarcerada no alto de uma torre por uma maldosa bruxa que a pobre garota acreditava ser sua mãe, ao menos é isso o que contam.
Mas não aconteceu bem assim, na verdade a Rapunzel morava em um apartamento, oitavo andar, junto com a avó dela, a bruxa má que só a deixaria cortar o cabelo depois que completasse dezesseis anos. Nossa, que ódio que ela sentia disso, se corroía de raiva por dentro. Brigava e esperneava, depois se trancava em seu quarto, mas não sem antes bater a porta, onde havia uma placa em que estava escrito “Antissocial Social Club”.

Passava horas no Discord ou no PlayStation matando tempo, numa dessas acabou conhecendo o Guilherme, que tinha dezessete anos e era viciado em mangás e RPG de mesa (vale ressaltar que faltavam três semanas para o décimo sexto aniversário da Rapunzel). Conversa vai, conversa vem, decidiram se encontrar, mas é lógico que a avó da garota não deixou, assim ela fugiu, não pela janela, nem por suas tranças, mas sim pelo elevador. Se encontraram na praça de alimentação do shopping, conversaram muito, comeram sorvete.

Na hora de voltar para casa, a menina não sabia onde enfiar a cara, e com razão; como punição, ficou dois meses sem celular e perdeu o direito de cortar o cabelo. Assim, quando completou seu décimo oitavo aniversário, foi embora de casa, fez um moicano (verde e azul), se reencontrou com Guilherme e tornou-se gótica.

Acho que todo mundo hoje em dia conhece uma Rapunzel, mas isso já é assunto pra outro dia.


Princesas também escalam torres

Julia Schvade Seibel
Estudante do Curso Técnico de Eletrônica
Fundação Liberato

Quando a gente é criança, cresce ouvindo histórias sobre príncipes e princesas, dragões malvados que cospem fogo e bruxas que prendem garotinhas inocentes em altas torres. E a moral de todo conto é que mocinhas assustadas são sempre salvas por mocinhos corajosos que enfrentam dragões e bruxas e grandes alturas por elas. Pelo amor verdadeiro.

Eu cresci assim: com minha mãe contando histórias de amor, me ninando até eu dormir. E eu sonhava com belos príncipes que carregavam espadas brilhantes e pesadas e sabiam exatamente como manuseá-las. Eu acreditava que, um dia, encontraria um desses, e seria feliz para sempre.

Só que a gente cresce. E, em um mundo onde amar é motivo para se envergonhar, eu encontrei meu príncipe – ou príncipes. Nenhum vestia armadura, carregava espadas ou andava a cavalo. Alguns andavam até de um jeito meio desengonçado. E, acho que, quando rolou o tão esperado “beijo de amor verdadeiro”, todos eles viraram sapos. Aí, eu decidi voltar para a torre – chutei meus sapatinhos de cristal e saí correndo –, porque eu não queria que mocinho nenhum me salvasse.

E, com o tempo, as grades da torre se tornaram maçanetas de um armário – quente, desconfortável e pequeno –; o dragão eram meus medos – me queimavam, machucavam e eram perigosos –; e a bruxa, uma mãe carinhosa, mas que, tentando me proteger, prendeu minhas asas, sonhos e liberdade com uma amarra apertada.

Só que, quando eu menos esperava, conheci um príncipe. De cabelos cacheados e um sorriso capaz de desarmar exércitos inteiros, ele não sabia usar uma espada, mas sabia jogar futebol. E me ensinou que eu era a única pessoa que poderia me tirar da torre e derrotar dragões e bruxas. E, quando eu o beijei, ele não virou sapo. Porque meu príncipe era, na verdade, uma princesa. Talvez não do tipo que usa coroa ou sapatos mágicos. Mas do tipo que escalaria uma torre por mim. Ainda assim, não o fez, porque eu entendi que a missão de derrotar meus monstros é somente minha. Mas a princesa não soltou minha mão, nem por um segundo. E aí eu aprendi que princesas também salvam princesas.

Deixe uma resposta

O seu endereço de email não será publicado Campos obrigatórios são marcados *