Durante o 29º Seminário Internacional de Educação – SIET, em 2022, Fernando Spilki proferiu a palestra “Lições da pandemia para novos e velhos cientistas”. Nessa entrevista concedida à Expressão Digital, o pesquisador responde a algumas perguntas relacionadas às reflexões feitas durante a palestra.
Entrevistado:
Fernando Rosado Spilki é graduado em Medicina Veterinária (UFRGS), mestre em Ciências Veterinárias na área de Virologia Animal (UFRGS) e doutor em Genética e Biologia Molecular na área de Microbiologia (Unicamp). É Professor Titular e Pró-Reitor de Pesquisa, Pós-Graduação e Extensão da Universidade Feevale e Bolsista de Produtividade do CNPq – Nível 1B. Foi também Presidente da Sociedade Brasileira de Virologia.
Entrevistadores:
Daiana Campani e José de Souza, professores da Fundação Liberato.
ED: Durante a pandemia, paradoxalmente, a ciência foi extremamente valorizada, mas também extremamente atacada. Sua palestra elencou uma série de legados que essa difícil situação nos deixou. Um deles foi o valor da experiência e do conhecimento científico já construído. Que desafios você enfrentou como cientista a esse respeito?
De fato, a ciência esteve paradoxalmente em um papel privilegiado e, ao mesmo tempo, foi atacada violentamente. Do ponto de vista do compromisso do cientista com a comunicação, com a informação de qualidade, alguns temas afloraram de forma muito evidente nesse processo, tais como a aparente dicotomia urgência versus rigor científico, os reflexos da polarização ideológica. Foram desafios enormes para a comunicação.
ED: Um outro legado apontado em sua palestra diz respeito ao processo de comunicação da ciência entre os pares. Durante a pandemia, o mundo precisava, o mais breve possível, de informações científicas, e, assim, muitas pesquisas acabaram sendo divulgadas – inclusive a um público não especialista – sem o processo de revisão por pares. Que reflexões podem ser feitas em relação à forma e à velocidade da comunicação entre os cientistas?
A tensão entre a necessidade urgente de informações científicas e a natureza demorada do processo tradicional de revisão por pares; a validade do sistema convencional de publicações científicas revisadas versus a agilidade do sistema de “preprints” (pré-publicações não revisadas por pares). Embora essas novas modalidades permitam uma rápida disseminação de dados, também houve, em alguns tópicos, a disseminação de desinformação ou de conclusões errôneas atingindo um público não especializado.
ED: Outro ponto abordado em sua fala foram os desafios do processo de divulgação da ciência à sociedade. Durante a pandemia, em meio a um cenário de infodemia e de desinformação, muitos cientistas usaram suas redes sociais para divulgar, diretamente a seus seguidores, informações pautadas na ciência. Quais as potencialidades e os desafios dessa estratégia? De que forma, afinal, devemos discutir ciência com a sociedade?
A pandemia gerou um nível sem precedentes de cobertura da mídia sobre pesquisas científicas, e essa comunicação geralmente aconteceu em tempo real. Essa rápida exposição a descobertas científicas complexas levou a resultados positivos e negativos. Por um lado, ajudou a manter o público informado; por outro, às vezes levava a mal-entendidos ou à sensacionalização dos resultados científicos. A meu ver, a participação direta de cientistas, mesmo em redes sociais, mas especialmente através dos canais de mídia organizada, atenuou essas questões e foi decisiva para transmissão de informação confiável no enfrentamento da pandemia de covid-19. Aliás, esse tipo de ação não deveria parar nunca. Há muitos temas para os quais o caminho das soluções e da própria informação do público dependem da ciência e dos cientistas Muito mais espaço em canais da mídia geral deveria ser dado para temas como mudanças climáticas e outras questões. O desafio também reside em comunicar de maneira que se entenda que algumas questões, tais como vacinas ou aumento do volume de chuvas, necessidade de troca de fontes de energia ou eficácia de tratamentos médicos, por vezes, não são tema de opinião ou gosto, mas realidades baseadas em evidências. Nisso a educação tem um papel primordial, na formação do raciocínio científico e do pensamento crítico.
ED: Qual o papel das instituições de ensino, tanto as de educação básica quanto as de educação superior, nesse processo de divulgação da ciência para toda a sociedade?
As instituições de ensino, tanto na educação básica quanto na educação superior, são peças-chave na divulgação da ciência para a sociedade. Além disso, para divulgar adequadamente, precisamos de um público disposto a escutar, o que só se resolve a longo prazo; precisamos, portanto, formar em ciência. Um processo adequado de ensino, construído desde os níveis mais fundamentais até o nível superior, com pilares fixados no domínio dos aspectos teóricos conjugados com a oportunidade de vivenciar a prática, sem esquecer de um arcabouço de formação em ciências básicas como filosofia, ciências sociais, físicas e naturais, seria, a meu ver, o caminho factível para a construção de uma sociedade onde realmente a ciência seja compreendida o suficiente para servir de lastro do desenvolvimento. Isso é de uma obviedade terrível, mas muito difícil de colocar em prática. Precisamos investir esforços em alfabetização científica, formação de pensamento crítico, engajamento público dos cientistas e trabalhar, no dia a dia, no desenvolvimento de futuros líderes científicos, promovendo uma sociedade mais bem informada, que se beneficie também, de forma mais universal, do progresso científico.
ED: Quais serão alguns possíveis desafios que os “novos” cientistas brasileiros precisarão enfrentar nas próximas décadas? Esses desafios serão diferentes dos já enfrentados pelos “velhos” cientistas ou o cenário possivelmente será outro?
Embora alguns desafios do passado possam persistir (limitações financeiras, condições de trabalho, etc), o cenário pode ser diferente para os “novos” cientistas brasileiros devido à dinâmica global em evolução, à maior dependência da tecnologia, aos impactos ainda não mensuráveis da evolução de ferramentas de inteligência artificial, entre outros. Um desafio geral bastante previsível é a necessidade, cada vez mais evidente, de comunicação com a sociedade, o que já não é mais uma atividade opcional para cientistas, mas algo que tem de estar entronizado na rotina de pesquisadores. Além disso, considerar em todas as áreas as necessidades específicas e o contexto do Brasil, incluindo nossos desafios socioeconômicos e disparidades regionais, desempenhará um papel importante na formação do cenário futuro da pesquisa científica no país e para a própria afirmação do papel social relevante dos nossos cientistas.
Parabéns ao Fernando pela brilhante entrevista.
Report comment