Histórias de professor: o que não é dito

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O que diz o que não é dito? Um olhar e o jeito como ele acontece… Mesmo um não olhar e o seu desviar… O que dizem os sorrisos, ou a ausência deles, os movimentos da face, o que fazem as mãos, os silêncios? Aquilo que não é traduzido com as palavras talvez seja o que há de mais expressivo. E, mesmo entre elas, há as entrelinhas, o subtexto, o contexto, o pretexto. O que é dito com o que se faz ou com o que se deixou de fazer? O que fala o tom da voz? O que digo quando estou somente ouvindo? O que falo quando me calo? Há uma arte em saber ouvir o que não é dito.

A palavra talvez seja a mais importante ferramenta do professor. Dar aula afônico ou disfônico certamente é complicado, se não impossível. A palavra é chave para as relações humanas. Mas, via de regra, não a utilizamos bem. Falamos demais. E, quando estamos ouvindo, não estamos, de fato, ouvindo, mas pensando no que iremos falar quando for a nossa vez. Nosso ego não está muito interessado em empatia. Quando conversamos, em geral, o que fazemos é um monólogo a dois ou em grupo. Queremos falar, especialmente de nós mesmos. É mais barato que terapia. Muitos adoram um microfone, mesmo quando ele não existe. Se somos professores, então, nem se fala. Ou, ao contrário, é aí que se fala mais. Rubem Alves escreveu sobre a necessidade de cursos de escutatória, já que em oratória somos proficientes. Precisamos, urgentemente, aprender a ouvir. Em especial, a ouvir o que não é dito.

As reuniões com os pais de meus alunos adolescentes acontecem em alguns sábados pela manhã, em minha escola. É um dia da semana em que tenho o hábito de dormir até mais tarde. Mas costumo ir, porque sei da importância da participação deles na aprendizagem de seus filhos. Ao lado de bons alunos, quase sempre há uma família que funciona bem. O contrário também é verdadeiro, e as exceções para confirmar a regra certamente existem. Entendo melhor meus alunos depois que conheço seus pais. Vejo, no contato com eles, uma experiência significativa para seus filhos, para eles próprios e para mim.

Curiosamente, naquele dia, o movimento na escola era intenso. Não haviam ainda inventado o boletim on-line. Vieram muitos pais, e vários deles trouxeram, além dos filhos, seus irmãos mais jovens e mesmo outros membros da família. Até bebês apareceram. Foi nesse clima efervescente e com a sala repleta que o João Arthur surgiu. Era um adolescente franzino, de estatura média, com um lindo cabelo ruivo e um rosto marcante, parecendo um personagem de série da TV ou de histórias em quadrinhos. Com os olhos cinza-claros e pequenas pintas na pele, tinha um ar de menino feliz. Mas era bastante quieto e tímido. Ele não veio com os pais, não entendi por quê. Em sua companhia, estavam seus avós e a irmã menor. Era uma família de pequenos agricultores. Gente acostumada a acordar cedo e trabalhar muito. Peles marcadas pelo sol e mãos calejadas de extrair da terra a própria sobrevivência.

Quando me perguntaram pelo jovem, disse, olhando os avós:

— O João é um aluno excelente. Dedicado, esforçado e bem-educado. Vocês estão de parabéns!

Faz muito tempo que isso ocorreu, mas o rosto da avó, depois de ouvir meu comentário, nunca mais saiu de minhas lembranças. Ela nada falou, mas ficou profundamente comovida. Seus olhos brilharam. A lágrima repentina a cair do olho esquerdo, a face constrita, revelando, ainda mais, as marcas dos embates da vida, e a boca, que expressaria uma voz embargada, caso pudesse falar, disseram tanto e com tanta eloquência de um sentimento pungente que palavra nenhuma poderia traduzir.

O que diz o que não é dito?

A reação da avó me pegou de surpresa. Nunca imaginei que uma simples frase teria essa repercussão. Meu comentário tocou uma corda de sua alma. Entrou em ressonância com uma emoção, de tal forma, que me pus a imaginar como ela poderia ser traduzida em palavras, se aquela mulher tivesse falado. Acho que seria algo assim: “Professor, o senhor não sabe a importância do que está nos dizendo. Minha filha, mãe do João, morreu no parto de sua irmã. O pai deles sumiu sem dar notícias. Meu marido e eu, então, decidimos criá-los, apesar de nossas idades avançadas. Trabalhamos no campo, plantando e tratando animais. Quase nunca descansamos. Nossos filhos já estavam crescidos, e achávamos que não teríamos condições de cuidar de mais duas crianças. O senhor sabe o trabalho que dá cuidar de crianças, não sabe? Mas Deus quis assim, e assim fizemos. Estamos criando eles do jeito que podemos, mesmo com o cansaço e as dores do corpo que a idade nos traz. Meu marido tem dificuldades de caminhar, mas continua trabalhando na roça. O João esteve bastante doente há uns anos, mas Deus não deixou ele ir. Acho que foi de tanto que rezamos. Então, ouvir o senhor dizer isso é uma bênção, pois confirma que o que estamos fazendo por ele está dando certo. Muito obrigado. Muito obrigado, mesmo! Ele gosta muito de estudar aqui”.

Ela não disse nada disso. Nem precisava. Certamente, não se expressaria com um português tão certinho assim. Porém, seu rosto e seu silêncio disseram muito mais e com muito mais proficiência. Falaram tanto que ainda a escuto na memória de minha alma, mesmo tanto tempo depois.

Foto 9 - Luiz Carlos Azambuja Silveira

Luiz Carlos Azambuja Silveira Professor de Artes e de Desenho Fundação Liberato

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