Metamorfose

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Cortinas fechadas. A cidade cênica paira com seus imensos holofotes, os quais iluminam timidamente o cenário urbano. Os fachos de luz, ruivos como o sol vespertino, são carregados por pequenos vaga-lumes de concreto, dos quais um se apressa para iluminar os trilhos diante de mim.

Aguardando meu vagão, observo o anoitecer urbano. Há uma baderna na avenida; um fumaceiro cinzento que se expele dos besourinhos, enquanto um silêncio profundo sufoca e reverbera sob a indiferença da plateia.

Espanto-me com a nuvem de besouros metálicos, os quais ignoram um da mesma espécie, capotado, às margens da via pública. Desviam do ocorrido como se nele houvesse algo repulsivo, seguem os passos da peça sem deturpar seu sentido.

Mesmo que raro seja um acidente, é comum que uma lataria capote na via pública. Depois de um tempo, ela retorna ao seu caminho. Porém, afiadas são as antenas das baratas no trilho que, enquanto o dono da lataria esbraveja para as outras formiguinhas, agilmente produzem recortes de sua tragédia urbana.

São gladiadores para o coliseu contemporâneo, e a plateia anseia por mais sofrimento. O dono da lataria, ou ao menos o novo figurante, é uma formiguinha grisalha – de olhos cansados – que, após um tempo a esbravejar, ajeita sua máscara e assume novamente o cargo de operário em eterno retorno.

Paisagens urbanas, afinal, são pintadas pelos dedos do caos; traçando, no final, o mesmo caminho. É entretenimento barato para os observadores do vagão, o teatro da dor – o encanto pela tragédia pessoal dos outros. Sou tola, pois me impressiono com pouco, e me assustam os olhares daqueles que devoram a tristeza alheia.

“Parece ser uma engrenagem, um ator indispensável para o funcionamento de toda esta peça”, penso quanto à cena, enquanto acaricio a frieza do metal argênteo e observo o astro acima. Aquele que sempre encantou meu olhar e iludiu minhas retinas. Os cantos daquele corpo pálido, cheio de curvas, imensurável no âmago do céu noturno, repleto de respostas escondidas em seu lado sombrio.

“Seriam aqueles os olhos dela?”, pergunto à minha mente inquieta.

Muitos aguçam as antenas e reviram os olhos só de ouvirem meus sentimentos quanto ao corpo estrelado. Me chamam de louca, por desejar algo tão misterioso, me pedem que tome um jeito na vida e arranje cor às minhas asas – incolores desde minha nascença.

Na espera de nosso vagão, muitos trabalhadores, amigos, namorados e familiares encontram-se. São pessoas comuns, que buscam – tanto quanto eu – alcançar suas tocas. Em minha autópsia, disseco dos olhares a mente de todos naquela estação; seus olhares estão em um cínico descaso, presos a telas brilhantes, engatinhando para cavernas de ignorância.

Aqueles que enrijecem suas antenas, mesmo que evitem me ofender, querem-me na mesmíssima posição: alienada ao seu teatro de máscaras, num pacato trabalho, ordenhando de mim até o vômito das vísceras.

O urbano clama por meus doces favos de mel, para depois me alimentar com suas concepções falsas e me transformar em uma figurante digladiando em seus espetáculos horrendos. São nesses papéis teatrais que todos se protegem, ocultos da crítica, em funções predestinadas.

— Você devia ser como o Carlinhos Júnior; seis horas de vida e a mutuca já tem casa própria – disse minha tia.

— Ou como a Betina, as asas dela são tão coloridas, é uma bela borboleta para viajar em companhia. Só não vira que nem os vagabundos da esquina. Perderam tanto tempo divagando que nem mais a vida lhes pertence.

Olho para minha máscara prateada e atiro-a aos trilhos. A centopeia das ferrovias aproxima-se e a parte ao meio. Abertas as portas do vagão, agarro a carne pálida da face e dilacero a pele que abriga meu rosto magro e fino. Esbugalhando os olhos rosados, assumo um novo papel que acompanha o corpo anoréxico e cinzento do meu ser: a metamorfose completa de uma mariposa, livre para imaginar. Abandonando a crisálida, agora, em busca da minha casa, reflito sobre a seguinte fala enquanto escorre meu sangue:

— Você sempre vive no mundo da lua, filha, quando vai prestar mais atenção em tudo que te cerca?

O vagão, xucro em solidão, parte em direção à próxima estação, enquanto o sangue da mariposa escorre sob os rodeiros da estação. Pouco importa aos alienados o espetáculo de sua conquista, pois enoja aos vermes da decomposição a crisálida que jaz abandonada no piso da estação.

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Samuel de Vasconcellos Pereira Turma 2423 – Fundação Liberato

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