Filho do peito

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Abotoando o casaco com pressa, Carlo corria em direção à porta.

Arrivederci, mamma!

Dona Vivaldi retrucou:

— Pere aí, ragazzo, onde pensa que vá sem dar uno beijinho alla mamãe?

Deu um forte abraço na senhora.

— O signore Camaleone me ligou, disse para ir rápido até a casa deles, parece ser algo envolvendo o Enzo.

— É? Que tem Enzo?

— Ah, ele fez uns exames, algo do tipo, mas acho que tá tudo bem…

Os olhos da velha padeira cerraram-se.

— Coisa grave?

— Não sei, é algo que tem a ver com sangue, acho.

Agora os olhos da velha padeira se arregalaram.

— Ah, meu filho… não, não pode ir agora, porque… Porque… porque tens que me ajudar na cozinha! – disse com certa tensão na fala. — É, creio que não haja problemas… o homem vai compreender.

— Agora, mamãe? Sabes que Don Luca não gosta quando atrasamos compromissos, né… Preciso ir.

— Carlo, ma tu…

O som da porta fechando-se cortou o diálogo e o coração da pobre mulher. Ela conhecia Don Luca Camaleone e sabia também do que ele era capaz. Seu filho, por outro lado, ainda achava que o velho lobo do mar tinha conquistado sua fortuna no ramo imobiliário.

∗∗∗

Chegando na mansão Camaleone, Carlo acenou para o porteiro ainda dentro do carro. Os dourados portões com folhas de prata abriram, e ele pôde estacionar no pátio dedicado à carga e descarga dos caminhões de suplementos. Seguindo a trilha de ardósia lapidada por dentro dos jardins de crisântemos, ele subiu as escadas de granito, adentrando pelas portas de ébano com maçanetas de marfim finamente trabalhadas. As pilastras neoclássicas de mármore polido contrastavam com o tamanho de detalhe dos capitéis. Ora, o sr. Camaleone adorava a beleza e o exagero do rococó francês.

Entrando na sala de estar, as colunas enquadraram o ambiente. Um tapete fino escarlate moldava passagem para um exuberante flamboiã, plantado no meio do imenso “Palácio da Lua” (nome pelo qual a mansão era conhecida). Sentado em uma poltrona de veludo negro com rebites de ouro, embaixo da árvore flamejante, o sr. Camaleone lia seu jornal, como se toda aquela beleza nem existisse em torno de si. A capacidade do ser humano de “normalizar” ainda me deixa impressionado.

Passando os oito seguranças, Carlo apressou o passo em direção ao homem. Este o percebeu, virou-se e, com um grande sorriso no rosto, levantou-se, dizendo:

— Carlito, meu filho! Chegou rápido.

Ele deu um abraço no jovem.

— Sente-se, vou pedir para que façam um cafezinho para nós”, disse o magnata.

— O senhor pediu para vir rápido, e o fiz.

— E o fez bem! – exclamou num tom vívido. — Admiro muito as pessoas que têm esse ânimo, esse coração de jovem, como você. Não o vejo há algum tempo… Como vai?

— Ah, o senhor sabe, a faculdade cobra bastante de mim, mas, tirando isso, vou bem.

— Isso tudo faz parte… fases da vida. Tua mãe, va bene?

— Claro, ela e minha irmã estão cuidando da padaria agora. Confesso que às vezes até me sinto meio mal por não as ajudar tanto…

— Ah, não te preocupes com isso agora, rapaz, tá investindo no teu futuro.

— É, o senhor sempre fala isso, mas não quero ser um peso para elas…

— Tu não é, acredita em mim, mas bom que pensa assim, bom mesmo, não pensa que nem aqueles marmanjos vagabundos… Mas, mudando de assunto, me conta uma coisa: e as namoradinhas?

— Ah, senhor – disse Carlo enrubescendo. — O senhor sabe que eu…

— Hahaha! – Seu Luca deu uma gargalhada. — Eu sei, eu sei, tô brincano contigo!

Uma empregada interrompeu a conversa, trazendo uma bandeja de prata lotada de doces e com café. Aqueles bolinhos pareciam maravilhosos

Sr. Camaleone pegou sua xícara (vinda pronta da cozinha: café preto com 2⁄3 de um cubo de açúcar), enquanto Carlo se servia de um chá. Este perguntou:

— E Enzo está?

Don Luca “engasgou-se levemente” com seu café, logo mostrando um sorriso amaríssimo para o seu convidado. Disse:

— Ah, sim, Enzo…

— O que aconteceu?

— Ah, nada demais, só algumas… “recorrências” da vida.

— O que passa?

O velho homem deu um suspiro, disfarçou a tremedeira enquanto se virava para a empregada.

— Lídia, deixa uns dois pãezinhos aqui e pode levar a bandeja. Ah, chama Giovanno qui, também”, disse ele com peso na voz. Prosseguiu após a saída da governanta:

— Sabe, Carlo, não vou te mentir: Enzo non tá bene.

O rapaz recebeu aquilo com desgosto.

Dio mio

— Ele… ele sempre teve um problema crônico, herdou da mãe. Probleminha de coração. Nunca pode fazer muito esforço, sabe? Ah, claro que tu sabe, tu foi criado com ele!

— É, realmente… nunca foi muito atlético, foi sempre mirradinho, parado…

— Sim, justamente, por conta das intempéries dele. Acontece que, ontem à tarde, foi realizar só mais um exame de rotina, coisa boba e…

O velho repousou a xícara de porcelana num belo pires chinês. Soltou outro suspiro, olhando para o teto branco. Esse deve ter levado metade da alma dele.

— Carlo, Enzo vai morrer.

O jovem sentiu um calafrio descendo sua espinha. Ninguém lida bem com a morte, mesmo que ela seja uma das nossas únicas certezas. Disse:

— Ma-mas senhor, não tem o que fazer?

— Então, ele…

— Cês têm condições, e mesmo assim, quem sabe eu possa ajudar.

— Carlo, acontece que…

— Mesmo com todo dinheiro do mundo, não dá pra salvar ele? Não é possível que…

— CARLO! – exclamou Don Luca.

— …

— Me escuta, per favore?

— Desculpa.

— Afe… então…

O homem levantou-se, pegou a bengala dourada incrustada de rubis e pôs-se a andar. As pernas não ajudavam muito, mas se expressava melhor andando.

Enton, Enzo tá com um problema bem sério no coração. É grave, “bem bastante”. Ele já tá há uns cinco dias no hospital, mas non queríamos alardear ninguém. Os médicos têm receio que ele não aguente.

Carlo começou a lacrimejar. As lágrimas dos olhos do menino quebravam o coração do homem que de pé estava. Enquanto rios de dor escorriam pelo rosto dele, Giovanno, um guarda-costas, alto, robusto, entrava na cena com o rosto amarrado.

— Bom que chegou, compagno, senta lá. Pois então, Carlo, bambino mio – prosseguiu o relato. — Enzo, além dessa coisa no coração, tem um outro problema. Ele tem uma rara mutazione de sangue, uma tal de “ereagá nulo”, sei lá como chama, mas sei que dá umas complicações. Aparentemente, quem tem isso non pode receber outro tipo de sangue nem de órgão…

— Tá, então tem jeito? – A esperança voltou ao coração de Carlo.

— Tem, desde que o doador tenha “esse coisa” também.

Don Luca parou por um momento, tossiu e prosseguiu:

— Carlito, já sabíamos que isso poderia acontecer desde antes de Enzo nascer. Pesquisamos por doadores quando ele nasceu, para termos o contato de um. Ironicamente, um desses raros filhos de Deus era daqui mesmo, di Toscana – ele se virou e pôs-se em postura reta. — Figlio, tu é mia salvação.

Carlo nunca tinha visto Don Luca com os olhos marejados.

— Como assim?

— Carlito – O velho disse num tom ríspido. — Quem acha que bancou toda tua vida e teus estudos? A padaria de tua mãe!?

— Sim…? Talvez a faculdade tenha…

— Fiz um trato com tuo padre há muitíssimo tempo: eu cuido de tudo que é dificuldade de vocês de dinheiro; em troca, caso desse um problema com Enzo, nós teria… bem, um doador rápido.

A enorme mansão Camaleone virou um cubículo escuro e anaeróbio. O medo tomou conta das veias de Carlo, e seu coração pulsava sem cadência. Giovanno parava atrás dele, projetando sua sombra enorme. Gaguejando, Carlo disse:

D-don Luca, e-eu não entendo por quê…

Bambino, bambino, tu não tem filho. Tu não entende. Por filho a gente rouba, a gente frauda, a gente faz tudo…

Um sutil clique metálico ecoou no ar.

— … por filho a gente mata.

E o som estrondoso da pólvora reverberou pelas paredes do palácio.

O silêncio reinou por um segundo, até que a seca voz do Padrinho o interrompeu:

— Lídia! – gritou pra cozinha. — Liga pro hospital, manda eles trazerem um helicóptero rápido! Já temos o nosso doador.

Francisco Emannuel Sória Andrade Turma 1412 Fundação Liberato

Francisco Emannuel Sória Andrade
Turma 1412
Fundação Liberato

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