Em maio de 2024, o Rio Grande do Sul teve o maior volume de chuvas de que se tem registro, ultrapassando a concentração histórica da enchente registrada em 1941. Segundo o Instituto de Pesquisas Hidráulicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (IPH / UFRGS), choveu mais no período que antecedeu a enchente do Guaíba em 2024 do que na cheia de 83 anos atrás que alagou Porto Alegre. Toda essa chuva resultou na catástrofe que atingiu quase 95% dos municípios do estado, conforme os dados levantados pela Defesa Civil, sendo que a região dos Vales, a Grande Porto Alegre e parte da Serra, das quais alunos, professores e funcionários são oriundos, foram grandemente atingidas.
A Fundação Liberato está situada no alto do Bairro Primavera, de modo que não foi atingida diretamente pelas enchentes do estado; porém, foi extremamente afetada pelas fortes chuvas. A tragédia inviabilizou as aulas e as atividades de rotina da Fundação Liberato, uma vez que, no mínimo, o deslocamento foi prejudicado para boa parte da comunidade escolar, além das implicações decorrentes da inundação da própria moradia ou de familiares. Ou seja, a enchente impactou diretamente alunos, professores e funcionários que tiveram suas casas invadidas pela água, ou que precisaram prestar auxílio para familiares e amigos flagelados pelas enchentes. Além disso, boa parte das pessoas que acessam a instituição precisam viajar para chegar à escola, o que se tornou impossível por muitos estarem ilhados, de modo que as aulas foram inviabilizadas por quatro semanas.
Nos primeiros dias das enchentes, foi muito complexa a questão de encontrar espaços adequados para abrigar pessoas e animais que tiveram suas casas invadidas pela água; desse modo, a Fundação Liberato se tornou um desses abrigos para famílias e cachorros de Novo Hamburgo e São Leopoldo. Quando chegou a notícia de que seria necessária a mobilização da nossa comunidade escolar, em poucas horas professores, funcionários, Grêmio Estudantil, equipes Atrôpelando, TNT, Trio Eletro e Máfia da Graxa fizeram uma força-tarefa e transformaram o ginásio da escola em um espaço de acolhida para a comunidade.
Para fazer o registro histórico do “Acolhimento da Liberato”, ocorrido no período de 5 a 11 de maio, o Grupo Voluntários de Mídias (GVM) conversou com a comunidade envolvida nesse processo e fez o registro, em forma de documentário e de depoimentos, sobre a maior catástrofe climática do Rio Grande do Sul. Destacamos alguns trechos dos depoimentos que podem ser conferidos, na íntegra, nos vídeos da playlist no canal do GVM:
José de Souza (diretor executivo): “Somos uma instituição de ensino, uma escola, e sabemos lidar com a educação, no atendimento aos alunos, e estamos fazendo aquilo que é possível fazer, dentro das nossas possibilidades, dos nossos recursos, do nosso entendimento e da nossa capacidade, uma vez que somos professores, educadores e lidamos com situações em sala de aula, em laboratórios, em ambientes de ensino, mas aqui estamos diante de uma situação de crise, onde temos de fazer o abrigamento, o atendimento às pessoas, e que nos exige uma dedicação, um esforço bastante grande”.
Vívian Boldt Guazzelli Lisbôa (professora do Curso de Informática para Internet): “Cheguei no domingo, logo após o convite feito pela Direção, e a primeira emoção de chegar no espaço era de saber da responsabilidade pela frente, em acolher essas famílias que nem se sabia, ao certo, quantas seriam e da novidade desse momento, ao se perceber que não se estava preparado. […] Quando eu cheguei, nós tínhamos um espaço aberto, com algumas coisas chegando e, em aproximadamente duas horas, nós tínhamos duzentos colchões organizados […]. Isso tornou esse momento um pouco mais reconfortante. Claro que não saber como as pessoas chegariam nos colocou em muitas dúvidas, até mesmo de saber como acolher. […] Eu fiquei até o momento final do abrigo […] e eu posso dizer que, nesse momento, a sensação foi de missão cumprida”.
Paulo Alex Castro Viacava (auxiliar de ensino do Curso de Eletrotécnica): “Me chamou muita atenção a organização que foi conseguida neste evento. […] Em um tempo muito hábil, a escola recebeu as doações, colchões, roupas, itens de limpeza e estava pronta para receber as pessoas”.
Alexsander Costa Martins (auxiliar de ensino do Curso de Segurança do Trabalho): “O que me chamou a atenção foi a rápida mobilização e organização dos voluntários, a vontade de ajudar ao próximo e fazer o seu melhor naquele momento difícil. Já conversando com os abrigados, eu senti que as pessoas estavam muito gratas pela forma carinhosa e atenciosa com que foram recebidas na Fundação Liberato”.
Sandro Marmitt (professor do Curso de Química): “Acompanhei, de perto, o trabalho de acolhimento feito pelos alunos, professores, funcionários, pais e comunidade na Fundação Liberato e pude perceber o quanto nossa escola capacita os nossos alunos como cidadãos do mundo, que se colocam no lugar dos outros e estão prontos para ajudar, independentemente do desafio. Ficou muito clara a capacidade de organização que eles possuem e como eles conseguiram lidar com situações adversas; ao mesmo tempo que a gente estava em um momento de situação de vulnerabilidade, dava para sentir todo o afeto dos voluntários e das pessoas acolhidas, senti a necessidade das pessoas de expressarem seus sentimentos. Em muitos momentos, atuamos, essencialmente, como ouvintes; em outros, como apoio para fazer as pessoas se sentirem pertencentes. […] Se fosse para resumir tudo em uma única palavra, eu diria ‘empatia’ ”.
Ramon Fernando Hans (professor de Eletricidade e Tecnologia dos Materiais): “Tinha recreação para as crianças, tinha brinquedoteca, tinha veterinário, tinha médico, assistente social, psicólogo, enfermeiros, equipes formadas por ex-alunos, fazendo um excelente trabalho para recepcionar as pessoas, tão bem-feito esse trabalho que as pessoas, ao irem embora, queriam abraçar, choravam, porque gostaram muito do ambiente e foram muito bem-tratadas, eu fiquei muito orgulhoso da comunidade da Liberato pelo que fizeram nossos alunos, servidores e familiares, foi uma experiência sensacional”.
Márcia Isabel da Silva (professora de Matemática): “O que eu tenho para dizer sobre o abrigo é a aula de cidadania, que momento para vivenciar o coletivo. A comunidade Liberato fez muito bonito, estão todos de parabéns, eu me sinto muito grata por ter feito parte desse grupo”.
José Edimar de Souza (técnico em Educação – acolheu uma cachorrinha abrigada na Liberato): “Nós adotamos a Pudim, e ela foi muito bem-recebida por nós, [..] ter a possibilidade de acolher a Pudim alegrou ainda mais a nossa família […]. Ela é muito amorosa, muito carinhosa, inclusive com o nosso bebê”.
Sônia Rosele Porto Machado (professora de História): “Me chamou muita atenção algumas características que eu já enxergava nos alunos e que, ali no abrigo, ficaram muito evidentes […]. Eu enxerguei uma capacidade enorme de organização nos alunos, uma rapidez para solucionar ou dar respostas, uma paciência para esperar aquilo que precisava ser esperado […], um cuidado e um respeito com as pessoas e com os animais que me impressionou. […] Me chamou atenção o senso de cidadania e de comunidade que todos ali demonstraram”.
Lílian Amorin Pinheiro (bibliotecária): “A gente conseguiu traduzir um pouco do sentimento que a escola tem, no seu dia a dia, para as pessoas que estavam vindo da comunidade, da região, para serem acolhidas. […] Todos que estavam ali, trabalhando juntos, com certeza, ficaram marcados pela experiência, por essa vivência, não só de ver tudo o que estava acontecendo, mas por estar ali, lado a lado, com as pessoas, acolhendo-as, ouvindo-as, por estar dividindo junto, saber o que eles estavam sentindo, tentando encontrar formas de amenizar aquela dor e passar um conforto”.