As cidades, os lugares onde vivemos na modernidade

  05-Relato-Cidades-Lugares-Modernidade-Revista-Digital-2015-01 Em 2014, as turmas de 2ª série do curso técnico de Mecânica da Fundação Liberato participaram da Olimpíada de Língua Portuguesa Escrevendo o Futuro, evento que propôs, a alunas e alunos das séries finais do Ensino Médio, a produção de um artigo de opinião sobre o tema “O lugar onde vivo”. A Fundação Liberato, enquanto lugar onde também vivemos, constitui uma comunidade específica e especial, uma comunidade regional que reúne discentes, docentes e servidores que residem em diferentes municípios da região do Vale do Sinos. Essa diversidade humana e esse convívio, entre pessoas com múltiplas experiências e olhares sobre as cidades em que vivem, propiciam o compartilhamento e a compreensão de formas diferenciadas de organização social, aproximam realidades regionais por vezes desconhecidas e possibilitam a construção de uma perspectiva mais ampla, coletiva e solidária. Dessa forma, ao considerar-se essa pluralidade de experiências como um material extremamente rico e enriquecedor, foi definido que a abordagem do tema nos artigos a serem produzidos na etapa escolar da Olimpíada consideraria a cidade como esse lugar onde cada um de nós vive. A Fundação Liberato, como espaço educacional público que promove a integração e o desenvolvimento de toda a região, também é esse espaço de encontro, de aproximação e de crescimento da cidadania. Assim, acredita-se que a oportunidade de escrever/falar, de ler/ouvir, de compartilhar e de refletir sobre as cidades em que moramos é uma importante forma de construção identitária e de reconhecimento de cada um e de cada uma, de todos e de todas, como cidadãos e cidadãs que podem participar na construção e na reconstrução dos lugares onde vivem. Os três textos finalistas da etapa escolar da Olimpíada de Língua Portuguesa revelam e comprovam a riqueza dos olhares de seus autores sobre o espaço citadino em que estão integrados. São textos com abordagens bastante distintas, mas todas elas inteligentes, sensíveis e, de certa forma, surpreendentes. O município de Ivoti é apresentado no artigo Duas nações e um só coração brasileiro, do aluno Henrique Alberto Enzweiler, texto vencedor na etapa escolar, vencedor na etapa municipal e finalista na etapa estadual. A cidade de Canoas é representada no texto da aluna Paula Rolin Schmitz. Por fim, Novo Hamburgo é o tema do artigo produzido pelo aluno Rafael Frederico Rosa Pereira. Antes (ou após) a apreciação dos mesmos, proponho a reflexão sobre as seguintes leituras e abordagens que o trabalho desses alunos inspiraram. Representação e reconstrução da cidade através da memória cultural Em Duas nações e um só coração brasileiro, Henrique Enzweiler representa o lugar onde vive através da confluência de experiências e memórias próprias e paternas. A memória, como instrumento de representação da cidade, estabelece relações de dimensão diacrônica, entre o que foi e ainda é, entre o que foi e não é mais. A memória é uma das bases que fundamenta o conceito e a percepção do tempo e do espaço presentes como “modernidade”, conceito e percepção essencialmente contrastivos, pois relacionam o atual com o que já passou, o vigente com o obsoleto, o novo com o antigo. De acordo com Hans Robert Jauss, pensador alemão que é um dos expoentes da teoria conhecida como Estética da recepção,

[…] a melhor maneira de se captar o sentido de moderno é a partir de seus contrários. legend zen for sale Moderno marca a fronteira entre o que é de hoje e o que é de ontem, entre o novo e o antigo […]: a fronteira entre as novas produções e aquelas que se tornam obsoletas – entre o que ainda ontem era atual e o que hoje está envelhecido […] (JAUSS, citado por OLINTO, 1996, p.51).

Mais do que a valorização do atual e presente, a modernidade está ligada ao anseio pela novidade e pelo futuro que estão por vir e ao reconhecimento da transitoriedade da vida presente. A cidade é o espaço humano da modernidade e a multidão é a matéria viva que ocupa esse espaço. É no contexto socioespacial das cidades que o conceito de modernidade adquiriu sentido de fluidez, transitoriedade e transformação, a partir da integração entre esses novos espaços e as massas humanas que os ocupam à medida que os constroem. Nesse contexto de espaço da modernidade, Ivoti é reconstruída não só por relatos que aproximam experiências e memórias pessoais de pai e filho, mas também como história e memória coletivas de grupos étnicos que se encontraram e que aprenderam a se vincular como uma mesma comunidade, a cidade. Essa construção de memória, de índole parcial e normativa e que integra os indivíduos a uma comunidade de aprendizagens e recordações (ASSMANN, 2008, p.39), denominada de memória vinculante, é uma das características que define a memória cultural. No entanto, ao construir-se e reconstruir-se numa dinâmica própria que ultrapassa limites de tempo e espaço,

[…] la memoria cultural permite que el individuo disponga libremente de las existencias mnemónicas y tenga la oportunidad de orientarse por sí solo en la vastedad de los espacios del recuerdo. En ciertas circunstancias, la memoria cultural libera de las coerciones de la memoria vinculante (ASSMANN, 2008, p.40).

É o que Henrique faz em seu artigo; exercita essa liberdade, propiciada pela memória cultural, e reconstroi essas existências e recordações para a representação do lugar em que vive. Não é à toa, portanto, que em sua proposta de intervenção na conclusão do texto, ressalte justamente a importância da memória cultural. Por seu caráter pluralista e por sua construção diacrônica, a memória cultural permanece aberta para a transferência de saberes da tradição e também para a revelação dum horizonte de novos saberes. Não só o discurso histórico, mas também o discurso pessoal tornam-se, assim, instrumentos e registros dessas tensões e contradições das quais a memória cultural extrai sua dinâmica própria (ASSMANN, 2008, p.50). Representação e reconstrução da cidade pelas sensação desconhecida Em Voa, Canoas, Paula Schmitz representa o lugar onde vive com um olhar diferenciado, incomum, que se aproxima bastante do literário. O texto causa um certo estranhamento, próprio da crônica literária, pois desperta a atenção para o despercebido e/ou aprofunda a percepção sobre o aparente e cotidiano. Tal construção é própria da autora, apreciadora de Literatura, e é a partir desse apreço e dessa influência que proponho, também, uma análise mais literária. A cidade, como espaço da modernidade, é o principal topus ou ambiente diegético na Literatura desde o século XIX. Através de suas obras, grandes escritores dedicaram-se a compreender e a definir a modernidade através da representação das cidades. Entre eles, destaca-se o poeta francês Charles Baudelaire, “que fez mais do que ninguém, no século XIX, para dotar seus contemporâneos de uma consciência de si mesmos enquanto modernos” (BERMAN, 1986, p.152). Baudelaire foi o primeiro poeta a explorar, incisivamente, a cidade moderna como tema lírico: a cidade de Paris e sua época, a Paris do século XIX, capital cultural da modernidade. O historiógrafo e crítico literário alemão Walter Benjamin, em seus ensaios Paris, capital do século XIX e A Paris do segundo Império em Baudelaire, identifica algumas personagens nos poemas de Baudelaire e as analisa como representações de indivíduos anônimos que vivem e se entrecruzam na grande cidade moderna. Entre essas figuras, destaca-se a do flâneur, “um típico caráter social do século XIX, que vive a metrópole como espetáculo, registrando ao vivo as sensações urbanas, e representando o escritor” (BOLLE, 2000, p.78). De observador da cidade, o flâneur, pouco a pouco, torna-se mais um na massa humana. Dilui-se na multidão, ora como investigador, ora como fugitivo, até tornar-se um “estrangeiro”, um anônimo na cidade moderna. Diante das aceleradas transformações do espaço urbano promovidas pela modernidade, o flâneur passa, gradativamente, da curiosidade à perplexidade, da perplexidade à melancolia, da melancolia à estraneidade de sentir-se estrangeiro em sua própria cidade. Solitário, mergulha na multidão e torna-se imagem do homem moderno; “o flâneur é sobretudo alguém que não se sente seguro em sua própria sociedade” (BENJAMIN, 1985, p.76), pois as marcas das pegadas do indivíduo são apagadas na massa informe da multidão. O texto de Paula Schmitz desacomoda e desafia nossas construções lógicas que buscam os atalhos para chegarem a um ponto final. Suas frases, literariamente construídas, levam-nos a acompanhar os passos e o olhar do flâneur, nos conduzem pelos caminhos pouco percorridos, insistem em nos fazer olhar para o que não é belo ou mais apreciável. Destoam do óbvio e, por isso, desconcertam ou causam estranhamento. Ao perceber-se o que antes não era percebido, revela-se o quanto nossas percepções são limitadas. Isso desconcerta, isso incomoda, pois nos torna estrangeiros no lugar em que vivemos, nos torna desconhecidos de/por nós mesmos. Nota-se, na autora, a formação da leitora que aprecia Fernando Pessoa. Lembro que no período em que ocorreram as atividades relacionadas à Olimpíada, a aluna lia poemas e versos do poeta. Pessoa criou um heterônimo, Álvaro de Campos, que representa o sujeito moderno cosmopolita que, através da expressão das sensações, almeja que a modernidade não nos desvie de nossa “humanidade”. Ao celebrar a sensação e a novidade, seus versos expressam um “eu lírico” aberto ao novo, como um pássaro que voa, mesmo que por céus acinzentados ou tumultuados, ou como um sujeito estranho, mas de certa forma amistoso, que convida para uma caminhada, a passos lentos, com olhar atento e a alma aberta a novas sensações frente ao desconhecido: passos, olhares e sensações que revelarão o que desconhecemos em nós mesmos. Representação e reconstrução da cidade pela luta heroica Em Gemada, Rafael Pereira representa o lugar onde vive através de uma interessante e inusitada metáfora. Seu texto também apresenta expressiva literariedade, mas sobressai, principalmente, o marcante teor crítico próprio de um bom artigo de opinião. Novo Hamburgo, lugar onde o autor vive e em que todos nós, da comunidade Liberato, também vivemos, é representado através de uma perspectiva crítica, corajosa, idealista e transformadora, o que Lukács classifica como atitude heroica na modernidade. O teórico russo Georg Lukács define que a obra literária é representativa da sociedade da qual emana, ou seja, apresenta vinculação com a sociedade do momento de sua produção. Em seu texto, Rafael Pereira representa o lugar em que vive como microespaço e retrato menor de um país e de um mundo de ordenação desigual ou de desordem, de conflitos, de incertezas, de injustiças, de individualismo exacerbado, de violências, de exclusões. O artigo retrata um lugar de relações de “oposição aparente entre indivíduo e sociedade” (LUKÁCS, 1981, p.179). A luta pela transformação desse mundo torna-se, de certa forma, emblemática, uma espécie de luta heroica na modernidade. Essa postura heroica pode ser assumida individualmente ou coletivamente. O herói dessa “epopeia negativa” da modernidade pode ser um indivíduo, pode ser a multidão. Quando o herói é a multidão, os indivíduos diluem-se nela. Quando o herói é o indivíduo, ele se afasta ou luta contra a multidão. A metáfora apresentada pelo autor de Gemada refere-se, claramente, à posição e à postura heroica coletiva e à margem da sociedade, ou seja, um heroísmo marginalizado. Marcante, também, é o posicionamento heroico do autor na conclusão do texto, quando assume que a luta é pela transformação de todos e de cada um, também de si mesmo. Ao compreender que “O ponto crucial do heroísmo moderno […] é que ele emerge em conflito, em situações de conflito que permeiam a vida cotidiana no mundo moderno” (BERMAN, 1986, p.164), o herói da modernidade é o indivíduo que luta para sobreviver, que vence cada dia e que tem consciência da fragilidade de sua existência. A silhueta desse herói configura-se através dessa luta em meio à multidão. Esse herói é o verdadeiro sujeito da modernité. Isso significa que, para viver a modernidade, é preciso uma postura heróica (BENJAMIN, 1985, p.98). Ratifica-se, então, que o herói da modernidade é um herói marginalizado, que passa a vida nos limites periféricos ou às margens da sociedade e da cidade grande. É uma espécie de proletário heroicizado, um herói explorado. Ressalte-se, também, que é um herói bastante limitado, pois a modernidade não permite o pleno desenvolvimento humano. Como nele se

[…] sobrepõem as imagens do herói e do escravo, do poeta e do trabalhador explorado, todos eles lutadores sem perspectivas, Benjamin chega ao diagnóstico de que a Modernidade é essencialmente hostil ao desenvolvimento pleno do ser humano (BOLLE, 2000, p.84).

O herói da modernidade encontra-se em situações cotidianas e triviais. Busca valores autênticos numa sociedade degradada. Luta contra e por essa sociedade, para sobreviver e para transformá-la. O herói da modernidade, o anti-herói ou herói perdido sofre e luta contra si mesmo, contra os outros e contra o mundo. Numa perspectiva mais desesperançada, considera-se que, de fato, “o herói moderno não é um herói: apenas representa o papel de herói. A modernidade heróica mostra ser uma tragédia em que o papel de herói está vago” (BENJAMIN, 1985, p.119). Elenilto Saldanha Damasceno Referências ASSMANN, Jan. Religión y memoria cultural. Tradução de Marcelo G. Burello e Karen Saban. Buenos Aires: Lilmod & Libros de la Araucaria, 2008. BENJAMIN, Walter. Sociologia. Tradução de Flávio R. Kothe. christian louboutin São Paulo: Ática, 1985. BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. cheap mu Legend zen Tradução de Carlos Felipe Moisés e Ana Maria L. Ioriatti. São Paulo: Companhia das Letras, 1986. BOLLE, Willi. Fisiognomia da metrópole moderna. São Paulo: EDUSP, 2000. DAMASCENO, Elenilto Saldanha. A representação da cidade no romance Eles eram muitos cavalos. Nau literária, Porto Alegre, v. 8, n. 1, 2012. Disponível em: <http://www.seer.ufrgs.br/index.php/NauLiteraria/article/view/26777/22145>. Acesso em: 11 abr. 2015. ENZWEILER, Henrique Alberto. Duas nações e um só coração brasileiro. Novo Hamburgo: Fundação Escola Técnica Liberato Salzano Vieira da Cunha, 2014. JAUSS, Hans Robert. Tradição literária e consciência atual da modernidade. In: OLINTO, Heidrun Krieger. Histórias de literatura. São Paulo: Ática, 1996. p.47-100. LUKÁCS, Georg. A teoria do romance. Tradução de José Marcos Mariani de Macedo. São Paulo: Duas cidades/Editora 34, 2000. _______. Sociologia. Tradução de José Paulo Neto. São Paulo: Ática, 1981. PEREIRA, Rafael Francisco Rosa. Gemada. Novo Hamburgo: Fundação Escola Técnica Liberato Salzano Vieira da Cunha, 2014. SCHMITZ, Paula Rolin. Voa, Canoas. Novo Hamburgo: Fundação Escola Técnica Liberato Salzano Vieira da Cunha, 2014.     Duas nações e um só coração brasileiro A cidade onde nasci, Ivoti, é pequena, tem cerca de 20 mil habitantes. Apesar de ser pequena, a cidade tem diversos pontos turísticos, como por exemplo, o maior número de casas enxaimel do Brasil, a antiga igreja que fora incendiada, as escadarias e o “Belvedere”, onde se pode ver uma paisagem cinematográfica. Ivoti foi colonizada, inicialmente, pelos imigrantes alemães, que influenciaram muito na cultura da cidade, em que a arquitetura tem traços bem característicos. Os alemães também trouxeram algumas festas, como o “Kerb” e a “Oktoberfest”, que são muito tradicionais no município. Ainda hoje, muitos falam o idioma da época, um dialeto do alemão que não é falado em nenhuma outra região do mundo. Mais tarde, a cidade foi colonizada pelos imigrantes japoneses e Ivoti tornou-se a maior colônia japonesa do estado do Rio Grande do Sul. Os japoneses também influenciaram muito a cultura da cidade e, hoje, há um memorial que demonstra o quanto essa cultura é importante para a cidade. Tanto alemães quanto japoneses desenvolveram fortemente a agricultura, cada um cultivando-a de acordo com seus costumes. Ambos sempre conviveram muito bem e nunca houve conflitos entre duas culturas tão diferentes. Há 30 anos, quando meu pai ainda estudava na cidade, acontecia um fato curioso na escola: os imigrantes japoneses falavam japonês entre si e os alemães, alemão. A língua portuguesa era responsável por fazer a comunicação entre japoneses e alemães. Numa escola brasileira, em que todas as aulas eram dadas em português, via-se, na hora do intervalo, o português tomar uma posição secundária. Hoje o nosso idioma já não tem mais um papel secundário nas escolas e é falado quase exclusivamente. Apesar de muitos ainda utilizarem os idiomas das antigas pátrias, as novas gerações falam cada vez menos esses idiomas e seguem, cada vez menos, a cultura de seus ancestrais. Muitas vezes, os pais conversam com os filhos em alemão ou japonês e respondem às perguntas em português. Muitos deixam de falar os idiomas dos pais e, com o tempo, esses idiomas vão se perdendo. Deveria haver uma tentativa, por parte da prefeitura e do governo, incentivando essa diversificação cultural, porque deixar de seguir essas tradições e essa cultura é desperdiçar o que diferencia a cidade de todas as outras. Uma boa ideia, que incentivaria e reconheceria a importância da escrita nesses idiomas e da memória cultural, seria a criação de uma “Olimpíada Escolar Escrevendo o Passado”, similar a esta “Olimpíada de Língua Portuguesa Escrevendo o Futuro”. O retorno desse investimento, além da educação e do turismo, é a permanência de um valor cultural imensurável para a humanidade. As escolas precisam ensinar esses idiomas, estudar essas culturas, os alunos precisam aprender sobre as tradições desses dois povos e escrever tendo consciência da importância delas para a cidade. Henrique Alberto Enzweiler     Voa, Canoas Às vezes, eu sinto como se vivesse em uma cidade partida ao meio, cortada por uma estação de trem, que possui um céu acinzentado e tumultuado. Seu céu revela-se acinzentado, pois é uma cidade industrial, e tumultuado por possuir uma base aérea. Eu gosto de caminhar perdida pelas ruas, embora seja perigoso, mas gosto de observar as árvores e o número de praças pequenas espalhadas aos montes, pelos diversos bairros. Costumamos nos achar uma capital, o que, em parte, não deveria estar errado; temos fácil acessibilidade às estações da grande Porto Alegre, o que, vendo por esse ponto, poderia nos tornar um anexo a ela. Canoas poderia ser denominada cidade-teste, fomos os primeiros a testar o recadastramento biométrico e o sistema de detecção de tiros no Brasil. Estamos distantes de ser uma cidade ideal, onde existam apenas pessoas boas, mas somos pessoas abertas a iniciações. Poderia oferecer um grande número de aspectos que tentassem descrever o lugar onde moro, porém seria amplo e vago ao mesmo tempo. O lugar onde eu moro é o lugar que meus pais acharam apropriado para nós e, apesar de seus defeitos, assim foi feita a escolha. Canoas é feito um pássaro, às vezes voa alto, por outras voa baixo, mas sempre se encontra aberto a novas rotas. Paula Rolin Schmitz     Gemada Bem-vindos a Novo Hamburgo, capital nacional do calçado. Fonte de emprego para todos. Moradia para todos, e o melhor, não é necessária especialização na área. Bem, não mais. Bem-vindos a Novo Hamburgo, cidade que deixou de ser uma potência no setor coureiro-calçadista, que, com a baixa escolaridade de seus m oradores, deixou de ter emprego para todos. Aquela mesma baixa escolaridade tão banal antes, tão indiferente, que hoje determina o rumo de algumas vidas e que dita se haverá um lar, um local seguro para viver. Esse contraste temporal cria, hoje, um contraste social. A elite tirou o sapato do povo e depois de tê-lo calçado, correu e subiu um imenso degrau, deixando todos aqueles “preguiçosos”, “vagabundos” que, segundo ela, não querem aproveitar a oportunidade, que é só correr atrás. Mas é difícil correr descalço. Novo Hamburgo não chega a ser um rosto feio nem maquiado. Algumas cidades não mostram sua periferia, sua “parte ruim”, cidades que preferem deixar seus habitantes em segundo plano e mostrar só o que há de bom para agradar os turistas. Não, Novo Hamburgo é um ovo, um ovo em um pires. Temos, no meio, uma gema, dourada, brilhante, unida, e um pouco acima da clara. Em volta, temos a periferia, transparente, sem forma, espalhada, a clara. Um corpo despercebido, em volta daquela abóbada de luz amarela, na sombra. Novo Hamburgo, um ovo de codorna; o Brasil, um ovo de avestruz. Mas, de quem é a culpa? A culpa é deles, que são espertos e roubam o dinheiro público, a culpa é sua, que é esperto e fura a fila do bar. O princípio é o mesmo. A culpa é minha.

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