MÚSICA NA AULA DE LITERATURA A PARTIR DO TRABALHO COM O ÁLBUM TROPICALIA OU PANIS ET CIRCENCIS

Desde 2012, leciono a disciplina de Língua Portuguesa e Literatura para as turmas de quarto ano dos Cursos Técnicos de Mecânica e de Química da Fundação Liberato. Nessa função, ao trabalhar com Literatura, a ideia que me orienta é a de proporcionar a leitura das obras de arte, visto que o conteúdo mais específico da área foi abordado nos três anos anteriores. Uma das formas de seleção de obras para o trabalho é a relação de leitura obrigatória do vestibular da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Essa escolha se dá tendo em vista a perspectiva que muitos dos alunos têm de cursar esse vestibular, assim, o trabalho vai ao encontro de uma necessidade, mas não tem por ideal o pragmatismo, pois os livros da lista obrigatória são igualmente referências do cânone de literatura em língua portuguesa. No ano passado, a UFRGS surpreendeu ao propor como leitura o álbum conceito Tropicalia ou panis et circencis. E aceitei o desafio de trabalhá-lo com os alunos. Neste ano, o álbum permaneceu na lista, e novamente fizemos o trabalho. Assim, as aulas de Língua Portuguesa e Literatura foram um espaço privilegiado de audição das músicas e de conhecimento de alguns gêneros musicais que não estão na pauta da maioria dos jovens na contemporaneidade.

O referencial teórico para embasar o trabalho chegou até os estudantes a partir de duas oportunidades. A primeira foi o belo texto de introdução que Ana de Oliveira escreveu para a obra que organizou em 2010, cujo título segue o mesmo do álbum gravado em 1968. Tropicalia ou Panis et Circencis, o livro-objeto, conforme é definido, foi publicado pela Yia Omin produções, com patrocínio da Petrobrás. Há, na internet, a possibilidade de acessar esse conteúdo através do hotsite – Livro Tropicalia ou Panis et Circencis. A segunda foi a partir da pesquisa que os alunos fizeram sobre o tema, em duplas ou trios, visto que foram organizados grupos de trabalho conforme as doze faixas que compõem o disco.

O trabalho consistiu em três pontos que deveriam ser organizados e trazidos para a aula, para serem apresentados, num determinado tempo previamente estabelecido. O primeiro ponto era encontrar a música e trazê-la para a sala de aula, tanto na forma escrita, quanto na forma oral, a fim de ser disponibilizada para os demais colegas. Fazer e apresentar uma breve análise da letra da música, envolvendo aspectos de leitura mais superficial e leitura mais aprofundada, consistiu o segundo ponto. Esse é o voltar-se para “dentro da obra” e analisá-la, a partir dos conhecimentos linguístico-textuais de que dispunham, bem como de pesquisa em referenciais que encontrassem a respeito da obra. O terceiro ponto consistiu em fazer a leitura para “fora da obra”, relacionando a música a alguma outra obra de arte, com possibilidade de escolha que foi desde outra música até pintura e filmes, por exemplo.

Em sala de aula, a partir da leitura do texto já citado, conversou-se com os alunos sobre o movimento e seu contexto histórico-cultural. Além disso, mostrou-se que o movimento remonta à Semana de Arte Moderna, de 1922, temática já estudada em anos anteriores. Outra influência foi a da poesia concretista, que também foi abordada em aula. Após, os alunos, já organizados a partir das músicas do álbum, realizaram a pesquisa sobre a música que lhes coube. Em aula, as músicas foram ouvidas e analisadas, a partir do trabalho discente, tendo observação da docente no que diz respeito ao conteúdo apresentado.

As análises que os alunos realizaram, bem como as relações que estabeleceram com outras obras de arte foram muito interessantes e instigadoras. Vários gêneros musicais foram trazidos para a sala de aula, como forma de relação, o que tornou o trabalho mais rico e proporcionou que fossem ouvidas músicas que, de outra forma, não teriam feito parte da seleção musical dos jovens com os quais trabalho. Além disso, a partir da pesquisa, vieram trabalhos de pintura, poemas, filmes, enfim, houve uma variedade de outras obras que fizeram parte da atividade, fato que, se não fosse assim, eu não teria tido a oportunidade de trabalhar. Os relatos a seguir, de alunos do Curso Técnico de Química, embora não tragam a totalidade dos trabalhos realizados em aula, são maneiras de demonstrar como alguns alunos o perceberam.

Lucrécia Raquel Fuhrmann Professora de Língua Portuguesa e Literatura Fundação Liberato

Lucrécia Raquel Fuhrmann
Professora de Língua Portuguesa e Literatura
Fundação Liberato

 

 

“[…] A música analisada foi Baby, faixa sete do álbum que foi lançado em 1968. Esta música foi escrita por Caetano Veloso e foi cantada por Gal Costa. Durante a análise da música Baby, algumas coisas chamaram a minha atenção, algumas dessas precisaram de uma análise um pouco mais profunda sobre a música do que outras. Sobre a atividade, acredito que tenha sido uma ideia oportuna, pois realizar uma atividade de literatura com letras de música é uma ideia realmente muito boa. Alguns alunos não gostam de ler livros, muito menos os maçantes ou antigos, que possuem escrita mais complexa e diferente da dos dias de hoje. Já com músicas é diferente, ainda mais MPB, pois os compositores tentam levar a mensagem à população, o que torna a leitura mais fácil, e mesmo sendo muito mais curta que um livro, músicas que foram produzidas durante a ditadura e períodos com uma censura muito forte possuem mensagens escondidas, implícitas nas entrelinhas, o que faz com que a análise do texto tenha que ser mais profunda, ainda mais devido ao fato de ter que pensar no que o compositor queria passar para quem escutasse a música naquela época, fora, claro, que as músicas são boas e
ouvi-las é prazeroso […]”

Fernando Figueiredo Carlos

Fernando Figueiredo Carlos Curso Técnico de Química Fundação Liberato

 

 

“Ao analisar a música Miserere Nobis, foi possível perceber algumas referências tipicamente católicas, tanto no nome da música, que em latim significa ‘tende piedade de nós’, quanto na parte instrumental, que traz um solo de órgão de igreja com o tilintar de sinos. […] é uma música cheia de significado e história, que nos situa na época de censura e repressão que foi a ditadura militar brasileira. Para quem não tem conhecimento do período em que foi composta, a música pode perder um pouco o sentido e ser mais complicada de compreender, pois é rica em jogos de palavras, sendo possível montar a frase ‘misericórdia de nós, orai por nós, Brasil, fuzil, canhão, orai por nós’. A música é encerrada com tiros de canhão, que silenciam a melodia. Uma obra que tem relação com a música é ‘Inserções em circuitos ideológicos: Projeto cédula’, de Cildo Meireles, que carimbava notas de dinheiro e as colocava de volta em circulação. A frase carimbada fazia referência à morte do Jornalista Vladimir Herzog, morto na época da ditadura. […] A atividade realizada fez com que pudéssemos, além de conhecer mais as músicas do disco e sobre o período em que foram compostas, exercitar a interpretação e a análise intertextual da letra, assim como os aspectos da melodia e da parte instrumental. Foi possível perceber que a música vai além de uma frase bem escrita e de um som agradável, pois conta uma história e está inserida em um contexto sociocultural.”

Gabriela Lisieski, turma 1423

Gabriela Lisieski Fernando Figueiredo Carlos Curso Técnico de Química Fundação Liberato

 

 

“A música Geleia Geral, escrita por Gilberto Gil em parceria com Torquato Neto, é uma das faixas do álbum Tropicália ou Panis et Circencis, lançado no ano de 1968. […] O movimento tropicalista foi além deste disco. A ideia era fazer música engajada, não necessariamente em termos políticos, embora tenha sido mais evidenciado por conta do período. Geleia Geral tem a característica de trazer à tona a cultura brasileira fazendo relação com obras de diferentes regiões do país. A canção traz fragmentos de obras como Bumba Meu Boi (Boi Bumba), Canção do Exílio, Hino à Bandeira, o Movimento Antropofágico […] de forma direta, quando Gil e Torquato falam da ‘alegria é a prova dos nove’ e de ‘Pindorama, o país do futuro’. […] A música é bem agradável de ouvir. Tem um ritmo animado, com características de forró bastante notórias, e uma letra interessante e divertida, bem diferente das músicas geralmente escutadas pela maioria dos jovens, que na maioria das vezes escutam principalmente rock, sertanejo universitário ou funk. Uma boa opção pra quem se interessa em conhecer um pouco mais da cultura brasileira.”

Quézia Cristiane Ebert, turma 1412

Quézia Cristiane Ebert Fernando Figueiredo Carlos Curso Técnico de Química Fundação Liberato

 

 

“A música analisada foi Enquanto seu Lobo Não Vem, composta por Caetano Veloso e interpretada por ele com participação de Gal Costa. A canção do álbum Tropicália ou Panis et Circencis, lançado em 1968, faz diversas referências a outras obras e acontecimentos históricos. Numa primeira análise, superficial, nota-se um certo romantismo e até uma certa festividade. A fim de realizar-se uma interpretação mais profunda da obra, é necessário entender melhor o contexto no qual essa obra foi composta […] O romantismo seria identificado por trechos como “Vamos passear na floresta escondida, meu amor” e a festividade carnavalesca no trecho “A estação primeira da Mangueira passa em ruas largas” referenciando a escola de samba Mangueira. Porém, ao analisar-se profundamente a faixa 9 do álbum Tropicália percebem-se outras relações. O primeiro trecho citado, por exemplo, pode ser facilmente associado à fábula Chapeuzinho Vermelho pela cantiga cantada personagem Chapeuzinho ao andar pela floresta. Outra obra à qual se pode fazer associação é a canção Dora, de Dorival Caymmi, no verso cantado pela voz de Gal Costa em Os Clarins da Banda Militar. […] Sendo uma obra de tanta importância histórica, passa a ser atemporal, uma vez que marca um período de mudança política no país, bem como permite a existência atual de outros estilos de músicas que também realizam críticas sociais. Portanto, é de extrema importância a análise deste disco, pelo seu contexto, nas aulas de Língua Portuguesa, dando ao aluno a capacidade de ler nas entrelinhas.”

Vitória Gabriela Berlitz, turma 1411

Vitória Gabriela Berlitz Curso Técnico de Química Fundação Liberato

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