CONTOS GAUCHESCOS LER, VER OU FAZER?

E a velha discussão volta à tona: aula de Literatura cabe na Escola Técnica? A cada ano, parece que a discussão se renova, seja por questionamento dos alunos, seja por questionamentos da área técnica e da própria área de Língua Portuguesa.

Como tratar temas filosóficos, históricos, literários, artísticos numa escola que tem como foco a pesquisa tecnológica? Com o que esses conhecimentos podem contribuir? Como estimular os alunos endoidecidos com PID, TCC, FEICIT, MOSTRATEC etc. a se interessarem por Simões Lopes Neto, por exemplo, um cara que “fala difícil” e que, ainda por cima, trata de uma realidade que não é a de nossos alunos?

Pois é! Nesse contexto é que foi proposta a tarefa de criação de vídeos dos Contos Gauchescos aos alunos dos terceiros anos da Mecânica. Imaginem: terceiros anos – fase em que tudo é “mico”, tudo é “chato”, tudo é cheio de “ahhh não”!!!

Esse pensamento preconceituoso foi meu. Passei vergonha! Quando propus a atividade de criação do vídeo, houve até palmas! Só não houve beijinhos porque os guris da Meca são durões e não ficam de mi-mi-mi com as professoras!

Concluída a introdução informal, vamos ao assunto sério; ao que de fato interessa!

Com este relato, tenho por objetivo compartilhar uma agradável experiência desenvolvida com os alunos das três turmas de terceiro ano do Curso de Mecânica da Fundação Liberato: a adaptação para vídeo de alguns contos de Simões Lopes Neto.

O relato partiu do interesse em compartilhar os resultados da atividade como forma de encorajamento para a continuidade de práticas educativas lúdicas, muito já trabalhadas por colegas de outras disciplinas. E lúdico, aqui, não no sentido de pueril, mas sim, de prazeroso.

Sabemos do alto nível de cobrança a que são submetidos nossos alunos. E sabemos que o fruto dessa cobrança vem nos resultados que esses meninos obtêm em suas vidas profissionais.

Basta lermos os agradecimentos nos Relatórios de Estágio para constatarmos que eles se dão conta, sim, de que é preciso muito estudo e muita dedicação para dar conta do conteúdo, mas que isso é recompensado no final, com os elogios das empresas ao desempenho deles.

No entanto, como de praxe, esse reconhecimento acontece no momento em que eles estão saindo da Liberato. Enquanto estão aqui, a cobrança e a falta de tempo devido às inúmeras atividades são grandes.

Com esse cenário, inserir a literatura no espaço da escola técnica não é tarefa fácil. Há que se promover a atividade de forma a entusiasmar os alunos e dar-lhes a garantia de que ela será proveitosa, também, para outras disciplinas. No caso dos Contos Gauchescos, lidamos, por exemplo, com a História, na retomada de fatos, acontecimentos marcantes ocorridos no Estado e no Brasil nos séculos recentes; com a Geografia, na descrição dos relevos, vegetações, clima, topografia, na relação das personagens com o espaço físico em que acontece a narrativa; na Sociologia, com o estudo dos comportamentos típicos de um povo e a interferência de fenômenos culturais e sociais sobre ele; com a Linguística, mais especificamente a sociolinguística, na relação entre a língua e a sociedade, na observação da língua em recortes sincrônico (processo de variação que se observa na língua num determinado momento) e diacrônico (processo de variação que se observa na língua ao longo do tempo).

Passado o momento de apresentação da tarefa e persuasão de sua relevância, foi hora de conhecer o autor e os contos. Foi importante, nesse momento, situar o autor no tempo e no espaço, pois os alunos precisavam se dar conta do contexto de produção dos textos.

João Simões Lopes Neto (1865–1916), natural de Pelotas, filho de família tradicional abastada, foi um dos mais importantes escritores regionalistas do Rio Grande do Sul. Escreveu Contos Gauchescos, Cancioneiro Guasca, Lendas do Sul e Casos do Romualdo.

Os contos não retratam uma realidade atual e tampouco urbana. Contos Gauchescos teve sua primeira publicação em 1912. São causos relatados pelo personagem Blau Nunes, vaqueano que conduz o leitor através dos pagos, narrando histórias que expressam, acima de tudo, valores enraizados no imaginário coletivo que enfatizam a grandeza e a tradição do gaúcho do interior, como, por exemplo, valentia, fidelidade, brio, hospitalidade, honra, amor a sua terra.

Patrício, apresento-te Blau, o vaqueano.
– Eu tenho cruzado o nosso Estado em caprichoso ziguezigue. Já senti a ardentia das areias desoladas do litoral; já me recreei nas encantadoras ilhas da lagoa Mirim; fatiguei-me na extensão da coxilha de Santana; molhei as mãos no soberbo Uruguai; tive o estremecimento do medo nas ásperas penedias do Caverá; já colhi malmequeres nas planícies do Saicã, oscilei sobre as águas grandes do Ibicuí; palmilhei os quatro ângulos da derrocada fortaleza de Santa Tecla, pousei em São Gabriel, a forja rebrilhante que tantas espadas valorosas temperou, e, arrastado no turbilhão das máquinas possantes, corri pelas paragens magníficas de Tupaceretã, o nome doce, que no lábio ingênuo dos caboclos quer dizer os campos onde repousou a mãe de Deus… (LOPES NETO, 1976).

Os textos, cuja linguagem é de difícil compreensão num primeiro momento devido ao vocabulário e à sintaxe, precisaram ser decifrados pelos alunos através de uma intensa pesquisa vocabular para que eles não apenas lessem o texto, mas compreendessem-no para poder, depois, encená-lo de forma natural, não decorada; para que pudessem adaptá-lo com propriedade, escolhendo o sinônimo mais adequado àquela palavra naquela situação para conseguir recriá-la, como a cena inicial de Trezentas Onças:

Olhe, ali, na restinga, à sombra daquela mesma reboleira de mato, que está nos vendo, na beira do passo, desencilhei; e estendido nos pelegos, a cabeça no lombilho, com o chapéu sobre os olhos, fiz uma sesteada morruda. (LOPES NETO, 1976).

Além da leitura e da pesquisa, assistimos a vídeos de animação de dois dos contos: Jogo do Osso e Melancia – Coco Verde. As animações, que estão disponíveis no canal Youtube, contribuíram para que as turmas ouvissem as narrações e as trilhas sonoras e “entrassem no clima” para suas próprias interpretações.

O próximo passo foi o da distribuição dos contos por grupos. Em consenso, foi estabelecido o sorteio. Os contos trabalhados foram Trezentas Onças, No Manantial, Os Cabelos da China, Melancia – Coco Verde, Contrabandista e Jogo do Osso.

Os grupos tiveram duas semanas para preparar os vídeos. Foram duas semanas de risadas com os relatos dos erros de gravação, os quais, evidentemente, foram incorporados aos vídeos.

Os vídeos: fantásticos! A gurizada pilchada, carregando no sotaque, vestidos de prenda emprestados, gurias de bombacha e bigode, briga de facão, linguajar guasca, cena em carroça no sítio do vô, cena de afogamento na piscina de casa (porque em açude é perigoso), cena com fantoches, com desenhos… um verdadeiro show!

Encenação de Trezentas onças - 3311. Fonte: Caroline Severo Mineiro

Encenação de Trezentas onças – 3311. Fonte: Caroline Severo Mineiro

Afora a diversão, o que fica, também, é o contato com a história, com a língua. Ao trabalharmos com Contos Gauchescos, abrimos um vasto campo de reflexão e discussão sobre os valores regionais, o comportamento do gaúcho de hoje e do gaúcho de ontem, do gaúcho da cidade e do gaúcho do campo; o papel da mulher nos Contos; as características do Pré-modernismo e do Modernismo na literatura gaúcha; e diversos outros tópicos que chamaram a atenção dos meninos durante a leitura e a gravação dos vídeos. Surgiu até discussão sobre o papel das meninas no Curso de Mecânica. Foi uma excelente oportunidade de analisarmos conceitos pré-concebidos de nós mesmos. Deixamos de ler/ver a arte literária para vivê-la por alguns instantes.
Mas… como nem tudo são flores… para encerramento da atividade, não poderia faltar a produção de um texto, afinal, a tarefa foi da disciplina de Língua Portuguesa.

Findadas as apresentações dos vídeos, propus aos alunos a produção do Relatório da Atividade. Nesse relato, deveriam ser descritas em detalhes todas as etapas de nossos estudos sobre o Pré-Modernismo, desde a teoria até a apresentação dos vídeos. Dos relatos, vale destacar a unânime observação final de que fariam novamente.

O grupo concordou sobre a validade dessa experiência, que contribuiu muito para o entendimento da obra. Também algo muito positivo nessa atividade foi a colaboração de integrantes de outros grupos para a gravação do vídeo, promovendo a integração e garantindo um ambiente descontraído […]. Seria um prazer realizar alguma atividade desse tipo de novo (Grupo de No Manantial, turma 3323).

Por fim, esse trabalho possibilitou a todos nós, professora e alunos, mais do que apenas uma análise contemplativa de uma obra literária. Propiciou, principalmente, uma atuação efetiva na construção de conceitos significativos para a nossa formação. Fez-nos conhecer as novidades do passado.

Se vancê fosse daquele tempo, eu calava-me, porque não lhe contaria novidade, mas vancê é um guri, perto de mim, que podia ser seu avô… Pois escuite. (LOPES NETO, 1976).

 

REFERÊNCIAS

LOPES NETO, João Simões. Contos gauchescos. 9ª ed., Porto Alegre: Globo, 1976. (Col. Provínci).
Texto proveniente de: A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro <http://www.bibvirt.futuro.usp.br>

A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo
Permitido o uso apenas para fins educacionais.

Inaciane Teixeira da Silva
Professora de Língua Portuguesa e Literatura
Fundação Liberato

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