Conto: Maria

Maria

Rosa-choque era o seu vestido. Cor de assanhada e, por que não?, de ingenuidade infantil que passa batom e pó-de-arroz no afã de imitar a mãe. Não há mãe. Nunca houve. Orfandade, apenas, é que criou Maria. Uma pequena bolsa dourado-brilhante de tira fina e longa, acompanhando o vestido a passos curtos e saltitantes, lançados sobre o suporte de salto agulha e plataformas gigantes. As unhas carnais como a boca e as calcinhas. Eu vi. Andava e nem era noite. Naquela hora crepúsculo, em que o silêncio absoluto abençoa as almas todas como se fossem irmãs. Logo, muito barulho a carnavalizar os tormentos de uma nação inteira e a martelar na vida de Maria a razão de viver: o sonho. Não há sonho. Nunca houve. Realidade bruta é que cresceu Maria. Da vida quer somente um homem, ainda que um ou dois a cada dia. Assim é Maria: veste-se de noiva, todas as noites, para beijar a vida roubada durante o dia. Será mesmo preciso ser triste para se poder, verdadeiramente, sentir? Será mesmo preciso calar a voz e comer o pão que o diabo amassou para se falar com Deus? Só. É preciso ser só? As alegrias fugazes do dia a dia de Maria são como a insuportável pressão que suportam os pés das bailarinas em sapatilhas de ponta. A dor, o âmago, as lágrimas n’alma que riem por fora para disfarçar o que é verdade, o que é presente, real e tanta coisa por dentro. Maria dói, Maria sofre, vestida em cores vivas, quentes e ácidas e, abrindo um sorriso largo, quase um deboche, vai de samba em samba, pagode e forró, de bataclã em bataclã, escondendo-se, mostrando-se, apagando-se, acendendo-se, sem sequer se dar conta de que a mãe, que tanto imaginara, há sim. Dentro e fora dela, na compleição, nos gestos, na boca carnuda e úmida, que beija como se fora lembrança, e na profundeza do olhar, que corta como se fora passado, e o pai, também, nela, a reproduzir reações e movimentos, exatamente, como aos que tantas vezes ele havia procedido. Déjà-vu. Ninguém sabe. Nunca viu. Maria sequer sonha. A vida é que leva Maria. Todos os dias ao mesmo lugar, expondo a sua boca larga de escasso branco, o seu corpo exuberante de farta volúpia e a sua intimidade vadia sem tamanho. Nem alegre nem triste, nem escancarada nem porta cerrada. Nada, Maria. A vida dela é apenas o tempo das horas que passam. O sol pontual, ao se pôr, só faz lembrar Maria a vida colorida e bruta que é a sua. Hoje, o vestido é verde-limão.

 

Jorge Amaral Professor de Língua Inglesa Fundação Liberato

Jorge Amaral
Professor de Língua Inglesa Fundação Liberato

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