ARTIGO – O SER HUMANO E A LINGUAGEM

A definição clássica da essência do homem é: ser vivo dotado de Logos. O ocidente traduziu isso assim: o homem como animal racional, que é diferente dos outros animais, pela sua capacidade de pensar. A palavra Logos foi traduzida no sentido de razão ou pensar, mas significa, também, linguagem. Aristóteles dizia:

[…] os animais têm a possibilidade de entender-se mutuamente, mostrando uns aos outros o que lhes causa prazer, a fim de poder buscá-lo, e o que lhe causa dor, a fim de evitá-lo. […] Apenas aos homens foi dado ainda o logos, para que se informem mutuamente sobre o que é útil ou prejudicial, o que é justo e injusto. (GADAMER, 2002, p. 173).

E acrescenta:

[…] com isso, também se dá o sentido para o justo e o injusto… e tudo isso porque o homem é o único ser que possui o logos. Ele pode pensar e falar. Poder falar significa: poder tornar visível, pela sua fala, algo ausente, de tal modo que também um outro possa vê-lo. O homem pode comunicar tudo o que pensa. (GADAMER, 2002, p. 173-174).

O homem pode pensar comunicar seu pensamento. Pode falar, tornar patente o que não está presente, de tal modo que também um outro possa vê-lo. Por essa capacidade de se comunicar, os homens podem pensar o comum, isto é, ter conceitos comuns e, sobretudo, aqueles conceitos comuns pelos quais se torna possível a convivência humana sem assassinatos e homicídios, uma forma de vida social, uma constituição política, uma convivência social articulada na divisão do trabalho. E tudo porque o homem é o ser dotado de linguagem.

Com o fenômeno da linguagem, conseguimos estudar a essência do ser humano e o desdobramento na história. “No espelho da linguagem, podiam se reconhecer as cosmovisões dos povos, conhecer detalhadamente a estrutura de sua cultura.” (GADAMER, 2002, p. 175). O fenômeno da linguagem deve ter um lugar privilegiado na reflexão da essência do homem.

Para Gadamer, a linguagem adquire um significado especial de ligação íntima com o ser humano e as suas ações. Segundo Almeida, Flickinger e Rohden, “linguagem não é somente a linguagem de palavra. Há a linguagem dos olhos, a linguagem das mãos, mostrar e nomear, tudo isso é linguagem e confirma que linguagem é sempre na relação de um-com-outro.” (ALMEIDA; FLICKINGER; ROHDEN, 2000, p. 162). O central para nós, a partir de Gadamer, é que a linguagem não deve ser vista somente como linguagem de palavras, mas como forma de comunicação. Significa não somente falar, mas também gesticular, que faz parte das relações linguísticas das pessoas.

O Logos é resultado do movimento reflexionante, ganhando distância em relação a mim mesmo. Essa ideia difere das ciências modernas que têm o fundamento da certeza na definição cartesiana de consciência como autoconsciência. É também um enigma que a linguagem coloca ao pensamento, porque todo pensar sobre a linguagem já está sempre “apanhado” pela linguagem. Esse habitar de nosso pensamento numa língua é que é o enigma. “Só podemos pensar dentro de uma linguagem e é justamente o fato de que nosso pensamento habita a linguagem que constitui o enigma profundo que a linguagem propõe ao pensar.” (GADAMER, 2002, p. 176). A linguagem não é nenhum instrumento, nenhuma ferramenta. Em todo conhecimento de nós mesmos e do mundo, sempre já fomos tomados pela nossa própria linguagem.

Nós crescemos, aprendemos a conhecer a nós mesmos e o mundo, na medida em que aprendemos a falar, ao usarmos a linguagem. Aprender a falar significa ganhar a intimidade e o conhecimento do próprio mundo e de como ele nos vem ao encontro. “Com o conhecimento do comum há o surgimento da linguagem.” (GADAMER, 2002, p. 178).

Compreendermo-nos na linguagem não tem um início fixo nem um fim: este saber é universal. Em todo nosso pensar e conhecer, somos já sempre parciais, devido à interpretação linguística do mundo. A linguagem é a marca da finitude, ela já sempre nos ultrapassou.

A linguagem, tal como a própria compreensão, é um fenômeno englobante, segundo Gadamer. Nunca pode ser captada como um fato, nunca pode ser totalmente objetificada. Tal como a compreensão, a linguagem engloba tudo quanto pode tornar-se objeto para nós. Tal como o ser e a compreensão, a linguagem é uma mediação, não é um instrumento. Há uma inseparabilidade do pensamento, da linguagem e da compreensão.

A linguagem revela o nosso mundo, o mundo da vida que o homem pode ter. Mundo não é o mesmo que ambiente, pois só o homem tem mundo. O mundo e a linguagem são antes temas transpessoais, e a linguagem é feita para se ajustar ao mundo. O mundo como estando entre as pessoas.  A linguagem não é apenas algo que ficou, que o homem encontra no seu mundo; antes, é nela e por ela que surge a possibilidade de termos um mundo. Isso significa dizer que a linguagem e o mundo transcendem toda a possibilidade de se transformarem totalmente em objeto. O que compreendemos pela linguagem não é só uma experiência particular, mas o mundo no qual ela se revela.

A experiência da tradução é a forma paradigmática para mostrar a vinculação indissolúvel que há entre linguagem e compreensão. A tradução nos torna conscientes do modo de ser linguagem como o meio do acordo. Nela nos damos conta da distância que há entre o espírito da literalidade originária do que é dito e o de sua reprodução, distância que nunca chegamos a superar por completo. Assim, as traduções não conseguem nunca substituir o original, vai sempre já estar presente algo do tradutor, vai ser uma compreensão diferente. Isso acontece porque o tradutor não copia simplesmente o dito, mas se posiciona na direção do dito. E isso sem considerarmos que existem muitas coisas não ditas no dito que é impossível perceber totalmente. Quando entramos em contato com uma tradição escrita, não compreendemos apenas algo individual, mas nela toda uma humanidade passada se faz presente em suas mais diversas relações com o mundo.

A linguagem é o verdadeiro centro do ser humano, quando considerada no âmbito que só ela consegue preencher: o âmbito da convivência humana, o âmbito do entendimento, do consenso crescente, da compreensão tão imprescindível à vida humana quanto o ar que respiramos. Realmente, o homem é o ser linguístico.

O ser humano constitui-se em sua humanidade na linguagem compreendida e falada como linguagem das coisas. Importa não reduzir o ‘em-si’ do mundo ao da ciência, obra do homem e que arrisca fechar-se sobre ela mesma, esquecendo o que a engloba e que a pressupõe. É necessário compreender simultaneamente a ciência como atividade particular entre outras atividades humanas e denunciar com vigor o antropocentrismo da ciência moderna, a consagração do modelo propriamente científico em modelo universal.

Quando contesto o poder de autolimitar-se da ciência, não quero tornar-me fatalista ou profeta do acaso. Penso, ao contrário, que não é a ciência como tal, mas em última instância a capacidade humana e política de todos nós que poderá garantir a aplicação razoável de nosso poderio ou ao menos fazer com que evitemos as catástrofes extremas. (GADAMER, 2002, p. 228).

Dessa forma, é possível falarmos em compreensão quando compreendemos que a linguagem é essencial, uma das características fundamentais do ser humano. O ser humano só pode compreender por já estar na linguagem. Isso não acontece naturalmente para o ser humano, como os instintos dos animais. A única coisa que acontece naturalmente é a capacidade de assimilá-la. O homem necessita de outro para poder usufruir a linguagem, um alguém que o ensine. Como a linguagem possui infinitos sentidos, vai depender muito do ‘mundo’ em que vivemos, a nossa forma de compreensão do mundo, ou melhor, o ‘mundo’ em que vivemos torna-se condição da compreensão do mundo. E isso responde à pergunta do porquê de não haver uma compreensão comum ou de porque existem compreensões diferentes e divergentes sobre os problemas atuais.

Vilson Joselito Schütz
Professor Fundação Liberato

 

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Custódio Luís Silva de; FLICKINGER, Hans-Georg; ROHDEN, Luiz. Hermenêutica Filosófica: nas trilhas de Hans-Georg Gadamer. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000. (Coleção Filosofia; 117).

GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método II: complementos e índice. Petrópolis: Vozes, 2002.

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