morte rubra

O peso da armadura pressiona os ombros de Ted para baixo, e cada passo do cavalo manda um espasmo por suas costas cansadas. Mas é assim mesmo, já está acostumado às marchas forçadas.
Observa, desinteressado, os arredores. Ele e sua comitiva seguem uma estrada de terra batida que se estende até onde a vista alcança. Cercada dos dois lados por campo aberto e plantações, é iluminada pelo brilho pálido do luar.
Normalmente, nunca consentiria em viajar noite adentro, mas seu cliente foi incisivo no aspecto da velocidade; então, aqui estava ele, cavalgando noite adentro, sonhando com o jantar e uma boa noite de sono.
Gendry aproxima-se dele, tocando o cavalo para alcançá-lo.
No auge de seus vinte e oito anos, Gendry tem metade da idade de Ted. Com longos cabelos castanhos, rosto bonito e porte altivo, costuma conquistar as garotas nos vilarejos por onde passa à cata de diversão. Seu cavalo, Trovão, é um bonito puro-sangue, feito para o combate.
Ted nunca vai entender como o garoto virou mercenário. Para ele, essa profissão era óbvia. Depois de sair do exército, não havia nada mais que pudesse fazer. E o mundo é perigoso. O que não faltam são nobres ou mercadores ricos precisando de proteção em suas viagens, como o cliente atual.
– Como vão as articulações, velhote? – Gendry pergunta, bem-humorado.
– Ainda posso lhe dar uma surra – Ted responde num resmungo.
– Então, o que acha do novo cliente? – Gendry pergunta, em tom conspiratório. Ted reprime um suspiro. Gendry ama fofocar.
Ted olha por cima do ombro, para a carroça coberta, dez metros atrás da dupla, onde o cliente dorme em meio a sua “carga preciosa”, o que quer que isso signifique. Clint, o empregado do cliente, guia a carroça, puxada por uma parelha de cavalos de carga com ar abatido. Ao ver seu olhar, Clint acena e abre um sorriso macabro. Seus dentes são marcados pelo hábito de mascar tabaco. Com as roupas surradas, barba malfeita e hálito fedendo a bebida, não possui um aspecto dos mais agradáveis.
– Não acho nada – Ted responde, olhando para frente novamente. – Ele nos pagou adiantado para chegar até Fawel; então, vou levá-lo até lá.
Gendry revira os olhos e bufa diante da falta de interesse de seu companheiro.
– E não está nem um pouco curioso para saber o que alguém como ele quer tão ao sul? Fawel é a última cidade verdadeira antes dos Pântanos Mortos.
Ted olha de relance para Gendry, aborrecido.
– Os Pântanos Mortos estão infestados de demônios, duvido que ele planeje ir tão ao sul. Fawel é uma cidade grande, com um posto do exército. Um lugar onde se pode prosperar, se souber como, e ele não me parece um simples comerciante – Ted responde com ar cansado. – Agora, bico calado e olho aberto. Não gosto de ficar em campo aberto à noite, e quero chegar o quanto antes ao próximo vilarejo, comprar uma caneca de cerveja e garantir uma cama. Os deuses sabem que estou precisando.
Gendry bufa, mas fica em silêncio.
Continuam cavalgando. Algo incomoda Ted, mas ele não consegue definir o que é. Uma coceira em sua nuca, que o faz ficar inquieto, algum pressentimento nascido do instinto de combate.
Ted ergue-se no estribo e olha em volta. Estão cercados por plantações de trigo prontas para a colheita, dos dois lados. Uma brisa agita os talos, fazendo a plantação parecer um mar fantasmagórico em movimento. Mas não é isso que está incomodando Ted. A noite está estranhamente gelada para essa época do ano, e o silêncio… Só agora Ted percebe. Não consegue ouvir o ruído de nenhum animal, algo incomum para a estação, quando a noite deveria estar pulando de vida. Sem som de insetos, piar de corujas ou uivo de coiotes.
Um ruído inesperado chega aos ouvidos de Ted, e ele capta um movimento com o canto do olho. Observa a plantação à sua esquerda, mas não vê nada além de um mar de trigo em movimento. Os pelos de sua nuca se eriçam. Ted ergue o punho, sinalizando uma parada. Em seguida, ouve Clint gritando com os cavalos para eles pararem. Ted puxa as rédeas de Passolargo e afaga o pescoço do cavalo. Gendry para ao seu lado, com a expressão confusa.
– O que foi?
– Acho que vi algo – Ted avisa, sem desviar o olhar da plantação. Gendry segue seu olhar e solta a espada na bainha.
– Vou dar uma olhada – ele avisa.
– Não, espere! – Ted tenta impedi-lo, mas Gendry já tocou Trovão a galope. O cavalo avança cerca de vinte metros na estrada; então, crava os cascos no solo e se recusa a sair do lugar. Gendry tenta obrigar o cavalo a avançar e, então, desiste e desmonta, praguejando em voz baixa. O garoto saca a espada e avança lentamente na direção da lateral da estrada. – Volte para cá, garoto idiota – Ted murmura consigo mesmo, sem tirar os olhos de Gendry.
Gendry aproxima-se lentamente, a espada erguida, pronta para um golpe. Um filete de suor escorre pela lateral do rosto de Ted enquanto ele observa o garoto parar em frente ao muro de trigo dançante. Ted está tão tenso que seus músculos começam a protestar.
Gendry balança o braço num golpe rápido e atinge os primeiros pés de trigo; então, volta à posição anterior. Os segundos seguintes passam lentamente, tensos como a corda de um arco. Depois de um minuto inteiro sem nada acontecer, Gendry relaxa e recua, embainhando a espada. Ted solta um suspiro e se permite relaxar, voltando a respirar normalmente.
Tão rápido que é apenas um borrão, algo sai da plantação e atinge Gendry para, em seguida, puxá-lo de volta para os trigos. O garoto tem tempo apenas de soltar um grito de pavor.
Sem pensar duas vezes, Ted finca os calcanhares em Passolargo e parte em galope, sacando a espada. Ainda está a mais de trinta metros, quando ouve os gritos de Gendry. Gritos que não esperava que um humano fosse capaz de proferir.
Passolargo estaca ao lado de Trovão, que pateia o chão, nervoso. Resignado, Ted pula do cavalo e continua a pé, correndo na direção de onde Gendry sumiu.
Ted embrenha-se em meio ao trigo, numa corrida desesperada, seguindo o rastro de sangue que mancha as plantas. Ainda consegue ouvir os gritos, mas agora estão mais para gorgolejos moribundos.
Ted finalmente encontra Gendry, estirado no chão, em uma pequena clareira de trigo amassado. O rosto do garoto está mortalmente pálido, e sua respiração é apenas um sopro fraco. Ele fita o céu com os olhos arregalados, a pupila contraída. Um som rouco sai de sua garganta.
– Gendry! – Ted ajoelha-se ao lado do garoto, sem entender de onde vem tanto sangue. Ele olha para o lado; então, o sangue some de sua face.
O corpo de Gendry foi decepado à altura da cintura. A marca do que parece uma mordida marca seu tórax, atravessando o aço da cota de malha, carne, ossos e músculos com uma facilidade espantosa. Uma poça de sangue se alastra, e as vísceras de Gendry espalham-se pelo solo.
Ted solta um ganido de pavor, que mistura pragas e um gemido animalesco de repulsa, e desvia o olhar. Ele pode ver a vida se esvaindo rapidamente de Gendry.
Um sussurro rouco escapa dos lábios do garoto. Ted aproxima a cabeça até quase encostar a orelha na boca de Gendry. Sua respiração faz cócegas em Ted.
– Fuja – é um sussurro fraco. Ted pestaneja por um momento, ainda em choque.
Um rosnado baixo e grave preenche a noite. Pelo tom, Ted tem certeza de que se trata de uma criatura enorme. Muito maior que um lobo. Com a respiração acelerada e a adrenalina inundando seu corpo, cerra o punho em volta do cabo da espada e olha em volta, cuidadosamente.
Uma respiração alta e ruidosa pode ser ouvida quando o rugido se esvanece. Com o coração na boca do estômago, batendo furiosamente, Ted vira-se lentamente.
Ele se vê diante de uma criatura que parece ter saído de seus pesadelos. Quadrúpede, as costas mais altas que um cavalo, corpo musculoso e patas poderosas, terminando em garras longas de aspecto afiado.
A face é temível, como a de um leão, mas ainda mais bestial. Olhos vermelhos que parecem estar em chamas, couro cor de ferrugem, uma juba de espinhos e focinho áspero e pontudo. Presas tão afiadas quanto navalhas, manchadas de sangue fresco, estão arreganhadas na direção de Ted, e a respiração da fera é como um sopro de chamas.
Tomado pelo pavor, Ted age por instinto e brande a espada com um grito de guerra. O aço se parte de encontro com o couro duro da besta.
Ela ataca.

Guilherme Patrick Behne Aluno do Curso Técnico de Química Fundação Liberato Primeiro lugar Categoria conto Liberarte 2016

Guilherme Patrick Behne
Aluno do Curso Técnico de Química
Fundação Liberato
Primeiro lugar
Categoria conto
Liberarte 2016

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